A Casa Gomm e a preservação patrimonial
Um grande historiador italiano, chamado Carlo Ginzburg, reiteradamente afirma que “as anomalias são mais ricas do que a norma”, isto é, que as exceções históricas têm mais a nos dizer do que as regras. Embora aplicado em outro contexto, esse pressuposto vale perfeitamente para a Casa Gomm.
Neste artigo, explicaremos por que a Casa Gomm é uma exceção à afirmação acima. De início, vale dizer que trata-se de uma edificação histórica de Curitiba que quase veio abaixo, sendo mais um exemplo de ocasiões em que a preservação histórica e o interesse econômico não estiveram do mesmo lado.
A construção da Casa Gomm
Antes que entremos diretamente nas disputas pela preservação e tombamento da casa (o tombamento histórico, não o literal), falemos um pouco da história da família Gomm e de sua residência.
Nos anos de 1910, o empresário inglês Henry Blas Gomm já circulava pelas bandas de Antonina, onde montara um negócio de exportação de mate queimado. Nesse período, ele se tornara acionista da Brazilian Lumber Company, indústria de extração e venda de madeira do interior do Paraná — que foi uma das principais responsáveis pelo estopim da Guerra do Contestado e pelo desmatamento da Mata Atlântica.
Em 1913, Gomm comprou um terreno em Curitiba, no atual bairro Batel, de 20.000m². Ali, ele construiu uma casa para a sua família, grande o suficiente para a sua esposa, a inglesa Isabel Withers, e para seus primeiros filhos.
A casa foi toda feita de madeira de pinho, sendo a única de Curitiba que possuía 3 andares (entre as casas de madeira). Diferentemente do estilo dominante entre imigrantes e ricos proprietários, a mansão não era eclética, mas seguia a arquitetura das edificações do nordeste dos Estados Unidos. Na capital, era a única com essa característica. Ao ver as fotos da casa, você, leitor, pode achá-la muito parecida com casas de fazendas vistas em filmes de época estadunidenses, por exemplo.
Na casa foram feitos grandes ambientes e amplas janelas, inúmeras lareiras (7) e salas de socialização, jardim de inverno, 5 quartos com ante-salas (no 2º andar) e espaço privativo para empregados (no 3º andar, o sótão). A maioria dos cômodos tinha duas entradas, uma utilizada pelos moradores e convidados, e outra pelos então chamados “serviçais”, que não podiam frequentar as áreas comuns da casa. Toda a distribuição dos cômodos da casa fazia com que os empregados acessassem os cômodos pelos bastidores, sem a necessidade de cruzar com “os donos ou visitantes da casa”.
Além da casa, impressionava também o seu entorno. O terreno tinha um bosque que abrigava mata nativa, espaço para criação de animais, cultivo de hortaliças e árvores frutíferas. Tudo isso bem no meio do bairro Batel, de frente para a avenida que atualmente tem o mesmo nome do bairro.
Segue abaixo algumas fotografias antigas da Casa Gomm:
Costumes britânicos e embaixada do mundo
Falar inglês britânico, tomar chá às cinco, jogar golfe e ter salas para jogatina dentro de casa era obrigatório. Mas, obrigatório também era, sem dúvida, a estadia de estrangeiros ricos na residência dos Gomm. Já nesse período, ela era chamada de A casa do Batel e Embaixada do Mundo devido à importância que recebera. Na década de 20, Henry Gomm se tornou cônsul britânico no Paraná, algo que elevou o seu status e fez de sua casa um ponto de encontro entre dignitários da mais alta classe.
Reuniões, banquetes, grandes bailes, tudo era feito ali com personalidades locais, nacionais e internacionais. Mesmo depois dos tempos áureos, os netos de Henry e Isabel contam que a mansão diariamente era povoada por inúmeros convidados.
A 3ª geração dos Gomm no Brasil e a venda da casa
Depois da morte de Henry Gomm, em 1929, as coisas foram, aos poucos, mudando. A casa continuou, de fato, recebendo inúmeros convidados, festas e eventos culturais. Eram bastante famosas, por exemplo, as comemorações natalinas preparadas pela família no bosque, que contavam com mais de 200 pessoas ansiosas pelo pudim de ameixa, receita tradicional dos Gomm.
Mas as festas não eram só no natal. Sabe-se que no dia da coroação da rainha Elizabeth II, em 1953, a família comemorou com muita pompa. Já no dia em que Marta Rocha, Miss Universo, chegou a Curitiba em 1954, ela foi recebida com um grande evento na residência dos Gomm. Festas nunca faltavam! Tanto que, em homenagem à sempre transitada Casa Gomm, foi escrita uma música: trata-se da canção Monsieur Le Consul à Curityba, composta em 1950 pelo francês Marc Herval, após ele ter feito uma visita a Harry Blas Gomm, primogênito dos Gomm (a letra é de Fernand Vimont e Henry Lemarchand).
Segue um trecho traduzido da canção (tradução nossa):
Há uma cidade no Brasil
Um cantinho charmoso e tranquilo
Onde a vida é doce e fácil
Chamada Curityba
Lá conheci um cônsul
Não era o cônsul da França
Mas para um cônsul, que sorte
Viver naquele país
Entre tuias e magnólias
Ele tem uma casa com varanda
Ele tem jardins cheios de resedá
O senhor cônsul em Curityba
Por essa época, Harry Gomm também foi cônsul britânico do Paraná, dando sequência à carreira do pai. Dos 6 filhos de Henry e Isabel, foi ele quem ficou com a casa do Batel. Ali, ele morou por anos com sua esposa, Luísa Bueno Gomm, que foi a primeira mulher a tirar o brevê de aeronáutica no Paraná. Isabel ficou morando com o filho e a nora, sendo que os demais irmãos e sobrinhos continuaram a frequentar a casa. Hoje são eles, os netos de Henry e Isabel, que guardam as memórias da família.
Embora a casa continuasse viva, alguns sinais de abalo já apareciam. Em 1946, o terceiro andar da casa pegou fogo. Para alguns, quem teria ateado fogo foram os empregados (mas essa é uma teoria conspiracionista). Fato é que a família conseguiu restaurar o imóvel respeitando a arquitetura tradicional.
As coisas mudaram, mesmo, 12 anos depois, em 1958. Neste ano, Harry e Luísa mudaram-se para outra região do Batel, e a casa de madeira passou a ser alugada. Ela então foi sede de consultório médico, da Casa Cor e abrigou a Escola de Música e Belas Artes do Paraná (EMBAP). Por esse período, o bairro Batel, antes um matagal com algumas casas, engenhos e chácaras, tornou-se urbanizado. O mercado imobiliário cresceu, terrenos e imóveis foram valorizados e os interesses econômicos prevaleceram.
Assim, depois da morte de Harry em 1976 e de Luísa em 1986, os seus cinco filhos decidiram pela
venda do terreno (do bosque e da casa) ao Grupo Soifer.
O processo de tombamento e a transferência da Casa Gomm
Com a venda, sabia-se de antemão que a casa seria demolida e o bosque posto abaixo. Inicialmente até se previa a construção de um hotel no local, mas prevaleceu o projeto de inauguração de um centro comercial (shopping center).
Cientes disso, algumas pessoas resolveram impedir a demolição para preservar a casa, pela sua importância material e imaterial, e o bosque, por resguardar mata nativa. Para tanto, o Conselho Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico do Paraná (CEPHA) foi fundamental.
Alfred Willer, arquiteto e conselheiro do CEPHA, deu início ao processo de tombamento. Para ser aprovado, ele necessitava de uma série de pareceres técnicos que considerasse justa a preservação do local. Felizmente isso aconteceu. Apesar de um parecer contrário ao tombamento escrito pela historiadora Cecília Westphalen, para a qual a casa não tinha relevância cultural, o também historiador Ruy Christovam Wachowicz elaborou parecer contundente, em que ressaltou a pertinência histórica da casa e de seu entorno.
Lílian Wachowicz, viúva de Ruy, conta que ele sempre defendeu a preservação da casa pela cultura que o imóvel resguarda, e que ria, com ironia, daqueles que achavam que seria demolida. A professora Lílian ainda diz que o então presidente do CEPHA, o advogado René Ariel Dotti, também desejava o tombamento.
Em 1989, oficialmente, a Casa Gomm e o seu bosque estavam tombados pelo estado do Paraná, mas esse não foi o final da história. O Grupo Soifer achou brechas na lei, e conseguiu impor seus interesses, sendo necessário, somente, que se realizasse uma contrapartida social com os bens tombados.
Depois de muitos trâmites, foi definida a contrapartida social. No início dos anos 2000 a Casa Gomm foi desmontada e transferida para um canto, sendo sua frente, antes ao lado da Av. do Batel, direcionada para a Rua Bruno Filgueira. O endereço atual da casa é Rua Bruno Filgueira, 850. Junto a ela foi mantida uma pequena parte do bosque. Todo o restante do terreno foi literalmente tombado para a construção do Shopping Pátio Batel, inaugurado em 2013.
Depois da mudança da casa, tanto o bosque quanto a casa foram, num gesto de “muita classe e consciência histórica”, doados ao estado do Paraná.
A Casa Gomm atualmente
Em vias de fato, foi o tombamento da casa e do bosque que impediu a completa demolição desse patrimônio curitibano. Por isso destacamos a atuação do CEPHA, que decidiu pelo tombamento mesmo não sendo um costume para edificações de madeira (consideradas frágeis e suscetíveis a incêndios).
Talvez devido a isso, desde 2013 a Casa Gomm é sede da Coordenação de Patrimônio Cultural do Estado do Paraná, a CPC, pasta que fica dentro da Secretaria de Estado de Comunicação Social e Cultura. A CPC é responsável pelo tombamento de edificações e árvores aqui no Paraná, atualmente.
Nada mais justo, portanto, que a Casa Gomm abrigue aqueles que preservam a história. Desde 2019, o Parque Gomm, espaço na frente da casa inaugurado em 2016, ganhou também o Memorial Inglês, espaço destinado à memória da Família Gomm e dos imigrantes ingleses do Paraná. Conta com a tradicional cabine telefônica britânica, doada a Curitiba pelo Consulado-geral do Reino Unido em São Paulo, além de várias placas com informações sobre a história da família Gomm e da imigração inglesa ao Paraná.
Hoje, quem passa pela Casa Gomm não imagina o quanto de história esse local resguarda. Ela é um raro exemplo de patrimônio histórico que se manteve em pé após uma dura batalha contra interesses econômicos. Por isso, deveria ser uma obrigação cidadã conhecê-la.
Há ainda mais histórias da Casa Gomm para contar, especialmente do Bosque e do Parque Gomm, inaugurado em 2019. Logo contaremos aqui, na pasta de movimentos sociais e de preservação ambiental. Aguardem!
Abaixo seguem fotos que tiramos em julho de 2021 da Casa Gomm.
Fotos mais antigas da casa e de seu interior
Texto e pesquisa de Gabriel Brum Perin e Gustavo Pitz
Fonte de pesquisa:
Aula de Nad Dolci sobre a Casa Gomm. In: Questões de Patrimônio Histórico e Cultural (25 de Maio), Solar do Rosário, Curitiba, 2021.
https://www.youtube.com/watch?v=0rnvBthD268
http://quapa.fau.usp.br/wordpress/wp-content/uploads/2016/08/CONSIDERA%C3%87%C3%95ES-SOBRE-O-PARQUE-GOMM-DO-IT-YOURSELF-DIY.pdf
https://www.fotografandocuritiba.com.br/2020/04/casa-gomm_10.html
https://www.gazetadopovo.com.br/vida-e-cidadania/velha-historia-em-novo-endereco-32s85kqpnnovtdvku1g6qol72/