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A singular trajetória da engenheira curitibana Enedina Alves Marques

“Fins da década de 60. Enedina, uma engenheira negra e franzina, chega à obra da Usina Capivari-Cachoeira, e vê o caos da construção. Ela chama seus operários, que não respondem. Indignada, ela então pega o seu revólver e atira várias vezes para o alto. O efeito é imediato. As dezenas de empregados se recompõem e passam a ouvir, silenciosamente, as repreensões de sua chefe.” 


Essa poderia ser uma história verdadeira. Embora não se tenha muitos detalhes, é sabido que Enedina Alves Marques, a primeira engenheira negra formada no Brasil, conquistava o respeito de seus subordinados pela sua imposição profissional e, em situações extremas, à bala.

           

Mas ficam algumas dúvidas: como Enedina conquistou esse prestígio? Quais foram os tabus que ela enfrentou na vida?



Infância e vida estudantil


Enedina Alves Marques nasceu em 13 de janeiro de 1913, em Curitiba, e foi registrada com os sobrenomes do seu pai e da sua mãe. Paulo Marques e Vigília Alves Marques (conhecida como Dona Duca) haviam chegado há três anos na capital, em 1910, e logo se estabeleceram no bairro do Ahu. Não se sabe qual a origem do casal, mas é provável que fossem descendentes de ex-escravizados.

         

Assim que Enedina nasceu, porém, Virgília se separou de Paulo e passou a morar no bairro Portão. Ela era doméstica e empregada do delegado e militar republicano Domingos Nascimento, cuja casa de madeira ficava na atual Rua Vital Brasil, esquina com a Rápida (imagem 1). Junto de seus filhos (Enedina era a única mulher), ela passava o maior tempo nas dependências de Domingos, mas também fazia trabalhos domésticos e de lavadeira para outras famílias da região.

 

Nesse ambiente cresceu Enedina Alves Marques. A convivência com a família Nascimento foi essencial na sua vida pessoal e profissional. Desde cedo, junto de sua amiga e filha de Domingos, Isabel (a Bebeca), Enedina teve acesso a um excelente ensino: ela foi alfabetizada na Escola Particular da Professora Luiza, no final da década de 1920, e na sequência ingressou na Escola Normal, onde permaneceu até 1931 (imagem 2).


Enedina educadora

 

Nem tudo eram flores. Durante a adolescência, embora vivesse na casa da família Nascimento, Enedina trabalhou em diversas casas como empregada doméstica. O dinheiro que recebia era investido em seus estudos. Além disso, mesmo depois de formada, Enedina ainda atuou como professora em várias cidades do interior do Paraná, como em Campo Largo e Rio Negro. Isso garantiu a sua sobrevivência (imagens 3 e 4).

 

Em 1935, ela estava de volta à Curitiba. Neste ano, um novo curso profissionalizante passou a ser exigido, e então ela o fez no colégio Novo Ateneu. Nesse período, ela viveu com a família do construtor Mathias e Iracema Caron, no Juvevê, bairro em que dava aulas numa casa por ela alugada em frente ao Colégio Nossa Senhora Menina.

 


Enedina acadêmica

 

Com a ajuda da família Caron, com quem continuou a morar, e com o dinheiro que ela própria conquistou, Enedina conseguiu cursar pré-Engenharia no Ginásio Paranaense. Embora fosse uma área diferente da sua, é certo que a professora se deu bem pois, já em 1940, ela foi aprovada na Faculdade de Engenharia da Universidade do Paraná.

 

Naquele tempo, a Universidade do Paraná não era gratuita. O curso de engenharia, segundo o historiador Jorge Luiz Santana, custava algo em torno de um salário mínimo por mês. Então, era realmente pesado se manter na faculdade com o salário de professora, mas Enedina conseguiu: suas notas eram boas e ela reprovou em poucas matérias.

 

Mesmo assim, a inserção de Enedina na engenharia não foi fácil. Majoritariamente, o curso era composto por alunos e professores de classe média, que certamente estavam desacostumados com a presença de uma mulher negra no curso. Numa sociedade desigual, é muito provável que o status construído por Enedina tenha causado desconforto naqueles que sempre estiveram no topo da hierarquia social.

 

Os outros dois casos foram ainda mais nítidos. Enedina, segundo Santana, era tratada como “professorinha” pelos seus pares, isto é, como se a engenharia não fosse lugar para ela. Isso ficou claro na cerimônia de formatura de sua turma, no final de 1945, celebrada no Palácio Avenida. No meio de 32 homens, Enedina estava sozinha e isolada.

 

Quem nos conta o contexto da formatura é o colega de Enedina, Adelino Alvez da Silva. Em entrevista para Jorge, ele diz que na solenidade os colegas de Enedina não a olhavam e nem mesmo a cumprimentaram. Segundo ele, a “elite não se misturava, não se relacionava com o povo, nem de classe média nem de classe pobre”.

 

Os pais de Enedina não presenciaram a vitória da filha. Quem de fato participou foi o casal Caron que, além de abrigá-la como filha, comprou a beca e a conduziu durante a festa da diplomação.

 

Enedina engenheira

 

Em 1945, Enedina se tornou a primeira mulher negra formada em Engenharia no Brasil e a primeira diplomada em Engenharia Civil na região sul. A sua formatura foi marcada como um fato de grande curiosidade para a sociedade curitibana, por ter conseguido transpor um espaço hegemonicamente masculino e branco. Aos 32 anos, a nova engenheira foi o destaque na solenidade de formatura ao lado de 32 colegas homens, no prédio do Palácio Avenida, no centro da cidade. Dali em diante seguiu se destacando na profissão

 

Primeiro, foi professora na Escola da Linha de Tiro, no Juvevê. Mal entrou e, em 1946, ela se tornou auxiliar de engenharia na Secretaria de Estado de Viação e Obras Públicas. Lá, ela foi destaque entre seus pares, motivo que a fez ser transferida, pelo governador Moisés Lupion, ao Departamento Estadual de Águas e Energia Elétrica do Paraná.

 

Como engenheira do estado, ela trabalhou no chamado "plano hidrelétrico", que sistematizou o aproveitamento das águas dos rios Capivari, Cachoeira e Iguaçu. Além disso, foi uma das responsáveis pela obra do atual prédio da Casa do Estudante Universitário do Paraná, em 1948, e do Colégio Estadual do Paraná, em 1950. Na década de 60, a construção da Usina Hidrelétrica Capivari-Cachoeira (atual Parigot de Souza), em Antonina, foi chefiada por ela - segundo Rafael Greca, Enedina teria sido fundadora da Copel (imagens 5, 6 e 7).

 

É nesse estágio da sua vida que entra a história dos tiroteios feitos por Enedina. Adelino, seu amigo, e Eleny Goncho, filha de Mathias e Iracema Caron (e grande amiga de Enedina, que foi sua sua madrinha de casamento e de batismo de sua filha) contam o seguinte: apesar de baixinha e franzina, Enedina era aguerrida e, quando necessário, ela sabia ser braba. O neto de Domingos Nascimento, Francisco, também conta que ela economizava bastante, pra não dizer que era "pão-dura''.


Segundo Eleny, Enedina usurpava os padrões de época pois usava calças, além de um belo revólver. Quando necessário, principalmente nas vezes em que Enedina dormia nos acampamentos da construção, ela dava tiros para se proteger ou para obter respeito dos empregados (esse extremismo, porém, era raro, pois a postura séria, rigorosa e enérgica de Enedina lhe dava autoridade).

 

Esse reconhecimento profissional, que incomodava seus pares, levou Enedina a ser convidada para fazer parte da pesquisa do historiador Octávio Ianni. Patrocinada pela UNESCO, a pesquisa resultou no famoso livro As Metamorfoses do escravo. Enedina deu entrevistas a Ianni. 


Vida pessoal, morte e legado

 

Enedina nunca casou e não teve filhos. Ela sempre foi independente. Apitava jogos de futebol dos amigos engenheiros, participava das conversas de bar e não se limitava ao papel de coadjuvante. Foi amiga de personagens importantes, como Ney Braga, que concedeu a aposentadoria a Enedina em 1962, e de outros, como a família Caron e Goncho (imagens 8 e 9).

 

Enedina Alves Marques foi encontrada morta no Edifício Lido, no Centro de Curitiba, vítima de ataque cardíaco. Apesar do atestado de óbito afirmar que ela faleceu no dia 27 de agosto, é provável que ela tenha morrido antes, pois, como morava sozinha, seu corpo demorou a ser encontrado. Seus amigos e familiares achavam que ela estava viajando, e a desconfiança só veio quando não compareceu à festa de aniversário de uma afilhada.


Muitos atribuem o sucesso em sua carreira ao patrocínio das famílias Nascimento e Caron. De fato, esses contatos fizeram Enedina ter acesso a espaços restritos a pessoas pobres e negras. Mas não nos deixemos enganar: ela conquistou o que conquistou por ela própria, com os próprios cálculos.

           

Embora fosse muito conhecida e admirada em vida, a memória da primeira engenheira negra do Brasil, formada pela UFPR, ficou esquecida por muito tempo. Mesmo que tenha se tornado nome de rua na Vila Oficinas, no bairro Cajuru, em 1988, sua importância histórica só foi resgatada nos últimos 15 anos.

 

No ano de 2000, o nome de Enedina foi incluído junto ao de outras 53 mulheres pioneiras em diversas áreas do conhecimento no Memorial à Mulher Pioneira do Paraná, na Praça Soroptimismo Internacional, no bairro Hugo Lange. 


 Em 2006, por exemplo, foi inaugurado o Instituto de Mulheres Negras Enedina Alves Marques, em Maringá. Já em 2014, pela primeira vez Enedina foi personagem de uma pesquisa acadêmica, realizada pelo biógrafo Jorge Luiz Santana. Nesse mesmo ano, houve um movimento para que o novo campus da UFPR, o Rebouças, levasse o nome de Enedina — até hoje isso não ficou definido.


Mais recentemente, em 2016, foi fundado o “Coletivo Enedina Alves Marques”, que nasceu da necessidade de representação da mulher nos cursos de engenharia e arquitetura do setor de tecnologia da UFPR. Somente em 2018 a UFPR reconheceu o papel de Enedina, através de uma placa em sua homenagem colocada no Campus Politécnico (imagem 10).

 

Recentemente, um mural de 90 metros quadrados, foi  pintado pelo Coletivo Circo Ótico, em uma parede dos prédios dos cursos de Engenharia elétrica, também no Politécnico (imagem 11 ). 

Atualmente, Enedina tem seu nome no Livro do Mérito do Sistema Confea/CREA. No Paraná, o Comitê Mulheres do CREA-PR organizou o Prêmio Engenheira Enedina Alves Marques, ressaltando que a homenagem com o nome do Prêmio é um reconhecimento de sua história de vida de muita luta e superação de obstáculos. 


Já em 2024, próximo da data em que Enedina completaria 111 anos, foi inaugurada uma escultura em sua homenagem no centro da cidade de Curitiba (imagem 12). A escultura, instalada no calçadão da Rua XV de Novembro, em frente ao histórico edifício Moreira Garcez, na lendária Boca Maldita, retrata Enedina sentada com um livro, símbolo de sua contribuição para a educação. A obra foi desenvolvida ao longo de seis meses no Ateliê de Escultura do Memorial Paranista, também em Curitiba. 


Texto e pesquisa de Gustavo Pitz, atualizado em 06/03/2024 por Cyntia Wachowicz

Fonte de pesquisa:  

JORGE LUIZ SANTANA.  Rompendo barreiras: Enedina, uma mulher singular. Monografia, História UFPR, 2013

http://www.humanas.ufpr.br/portal/historia/files/2013/09/jorge_luiz_santana.pdf


JORGE LUIZ SANTANA. Enedina Alves Marques: a trajetória da primeira engenheira do Sul do país na Faculdade de Engenharia do Paraná(1940-1945). Artigo, 2011.

https://revistas.ufpr.br/vernaculo/article/view/33232/21293


https://www.ufpr.br/portalufpr/noticias/inaugurada-placa-em-homenagem-a-enedina-alves-marques-primeira-engenheira-negra-do-pais-e-formada-na-ufpr/


https://www.fotografandocuritiba.com.br/2018/12/casa-domingos-nascimento-sobrinho-ficou.html


https://www.gazetadopovo.com.br/vida-e-cidadania/conheca-a-historia-da-engenheira-enedina-alves-marques-8zvma39hdusiu2rc2hmv4cklq/


https://premioenedina.crea-pr.org.br/#:~:text=O%20Pr%C3%AAmio%20Crea%2DPR%20Engenheira%20Enedina%20Alves%20Marques%20%C3%A9%20um,buscar%20seus%20sonhos%20e%20alcan%C3%A7ar 


Gregio, Amanda. https://blog.obraprima.eng.br/conheca-enedina-alves-marques-a-primeira-engenharia-negra-do-brasil/ 2023.


https://www.terra.com.br/nos/enedina-alves-primeira-engenheira-negra-do-brasil-ganha-escultura-em-curitiba,4da20fc8e1d0b7ac03fdde9487971e4dwmb83nga.html?utm_source=clipboard 

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