Morretes: 288 anos de história
Neste ano de 2021, a cidade de Morretes está completando quase três séculos de existência. Buscaremos contar, neste artigo, parte da história dessa cidade litorânea muito tradicional e muito conhecida, tanto no Paraná quanto no Brasil.
Origens
Até metade do século XVI, o território onde hoje fica Morretes - às margens do
Rio Nhundiaquara, antes chamado “Cubatão” - era ocupado exclusivamente por indígenas carijós. Destrinchando a palavra de origem indígena, “nhundia” significa peixe e “quara” significa empoçado ou buraco.
A partir de 1646, quando foi descoberto ouro na região, muitos viajantes e mineradores, oriundos principalmente de São Paulo, passaram a frequentar e ocupar o território.
À época do Brasil Colônia, um dos cargos de maior autoridade em nível regional era o de
ouvidor. O ouvidor representava o cargo de justiça máximo de determinada região. Na primeira metade do século XVII, o ouvidor régio da Capitania de São Paulo era
Raphael Pires Pardinho. Lembremos: nessa época o Paraná ainda não era uma província emancipada - o que só veio a acontecer em 1853. O território que hoje conhecemos como Paraná pertencia ainda a São Paulo, e estava sob a jurisdição de seu ouvidor.
Após uma correição em Curitiba, Pardinho estava descendo rumo ao litoral pelo Rio Cubatão, quando observou que em suas margens deveriam existir povoações, para que o rio se tornasse uma via comercial.
Determinou à Câmara de Paranaguá, em 1721, após visita a esta vila, que fossem demarcadas 300 braças em quadra - equivalente a 1.306.800 m² - nas margens do Cubatão para servir de sede de uma futura povoação - Morretes. O nome escolhido foi pelo fato de o povoado estar cercado por morros de pequena elevação que eram denominados morretes.
Um tempo depois, o ouvidor Lanhas Peixoto tentou, sem sucesso, revogar essa determinação. O caso foi para a Corte de Lisboa, que acabou por confirmar a ordem de Pardinho. Assim, em
31 de outubro de 1733, a Câmara de Paranaguá fez a medição das 300 braças, no local onde vivia o rendeiro do porto João de Almeida - oficialmente o primeiro morador de Morretes. Inicialmente, Morretes e Antonina pertenciam a Paranaguá. Com a emancipação de Antonina em 1798, Morretes passou a ser território desta vila, desmembrando-se de Antonina somente em 1841.
A povoação da cidade foi relativamente lenta, só havia a casa de João Almeida e outra denominada Casa da Farinha. Inicialmente, o caminho que ligava Curitiba a Morretes era o Caminho do Itupava, aberto por indígenas e mineradores. A trilha começa em Quatro Barras, na Região Metropolitana de Curitiba, e tem seu destino final em Morretes. Em 1873 foi concluída a Estrada da Graciosa, que passou a ser utilizada como principal trajeto de Curitiba ao Litoral. Os pontos finais da estrada eram as cidades de Morretes e Antonina. Com a construção da BR-277 na década de 1960, a Estrada da Graciosa passou a ser visitada para fins turísticos.
Em 1769 foi erguida a primeira capela de Morretes sob o nome de Nossa Senhora do Porto e Menino Deus dos Três Morretes. A partir disso, o porto passou a receber mais visitantes e a cidade se desenvolveu mais rapidamente. Esse crescimento, no entanto, não agradou a todos. Com o surgimento de Morretes, os tropeiros que desciam de Curitiba para o litoral passaram a fazer suas compras no Porto dos Três Morretes, não precisando mais se deslocar até Paranaguá, onde antes costumavam ir, percorrendo uma distância maior. Isso causou reações nos moradores da cidade de Paranaguá. Em 1780, a Câmara Municipal de Paranaguá proibiu a existência de casas de negócios secos em Morretes, com o objetivo de diminuir os prejuízos que seu comércio vinha sofrendo.
Os comerciantes de Morretes apelaram da decisão para o governo de São Paulo e para a Junta Real da Fazenda, e obtiveram ganho de causa. Assim, Morretes continuou recebendo os visitantes e se desenvolvendo cada vez mais.
Em 1812, no mesmo local onde estava a primeira capela, começou a ser construída uma nova igreja, que foi inaugurada em 1850 e está de pé até hoje.
Economia
Com seu desenvolvimento populacional e econômico, a cidade de Morretes, assim como o Paraná e o Brasil, foi atravessada por ciclos econômicos. O primeiro deles foi o do Ouro, que foi predominante nos séculos XVII e XVIII. Na região de Morretes, se destacava a Mina de Penajóia, uma das mais abundantes da época.
Já no Século XIX, a atividade econômica predominante foi a erva-mate. Na América, o mate foi herança dos indígenas nativos, que já o consumiam antes da chegada dos colonizadores. O ciclo da
erva-mate
no Paraná durou aproximadamente 60 anos, entre 1820 e 1880. Morretes, além de possuir engenhos próprios para a produção da erva-mate, era também importante para sua logística, uma vez que boa parte da erva produzida em Curitiba era escoada para o Porto de Cima e o Porto de Morretes, e depois prosseguia, via Rio Nhundiaquara, para Antonina e Paranaguá.
O mais recente dos ciclos econômicos e que até hoje tem sua herança muito presente em Morretes é o da
cana-de-açúcar. É muito famosa a produção de um dos principais derivados da cana - a cachaça de Morretes.
A produção de cachaça em Morretes vem de longa data. Já no ano de sua fundação, 1733, havia produção de cachaça no povoado. Mas foi no século seguinte que essa produção ganhou outra escala e ares de oficialidade. Na década de 1870, a indústria açucareira era fundamental para a economia brasileira. Nesse contexto foram criados pelo país engenhos centrais. Um desses engenhos ficava em Morretes, e foi inaugurado em 1877 na Colônia Nova Itália.
Fundada em 1877, a
Colônia Nova Itália foi um dos primeiros assentamentos de imigrantes italianos no Paraná. Chegou a contar com 543 famílias, totalizando 2.296 pessoas. Muitos de seus habitantes posteriormente se deslocaram para Curitiba, engrossando as fileiras de imigrantes italianos da capital.
Da época da fundação do engenho até cerca de metade do século XX, os alambiques - locais de produção de cachaça - se multiplicaram em Morretes, chegando a cerca de 60 unidades na década de 1950. Em 1958 houve uma forte fiscalização do Ministério da Agricultura, o que fez com que vários deles fossem fechados. Isso não impediu, no entanto, que a produção de cachaça continuasse sendo um aspecto muito importante da identidade e da economia de Morretes.
Dados de 2017 do IPARDES (Instituto Paranaense de Desenvolvimento Econômico e Social) mostram que, entre as cidades do litoral paranaense, Morretes é a que tem a maior colheita (130 hectares) e a maior produção (4940 toneladas) de cana-de-açúcar. Além de sua tradição e qualidade, a cachaça de Morretes é também reconhecida internacionalmente, sendo premiada no Concurso Internacional de Bruxelas.
Morretes é também muito famosa pelas plantações de banana e os produtos dela derivados, e por seu prato típico - o Barreado, que pode ser consumido em vários dos restaurantes da cidade. Além disso, destacam-se na economia predominantemente agrícola da cidade o milho, a mandioca, o arroz e o feijão.
Barreado
As versões para as origens do Barreado são controversas e múltiplas. Nosso objetivo aqui não é o de dizer qual das versões é a mais verdadeira, mas sim mostrar a existência dessa diversidade de narrativas, que acaba por enriquecer o folclore ao redor do prato. Há no entanto alguns consensos sobre como o Barreado foi trazido para o Brasil e sua principal raiz está ligada aos portugueses açorianos. É o que contam as pesquisadoras e donas de um restaurante especializado em comida tropeira Helena Menezes e Joana D´Arc Menezes, em trecho na tese de doutorado de Maria Henriqueta Sperandio Garcia Gimenes, “Cozinhando a Tradição: Festa, Cultura e História no Litoral Paranaense” (p. 83):
Os bandeirantes chegados de São Paulo de Piratininga, em 1578 [...] em busca do ouro de Paranaguá, uma das primeiras minas do Brasil, atraiu os portugueses dos Açores, em 1720. Eles legaram ao Paraná o prato que o representa: o Barreado. Único em todo o Brasil, é testemunha do costume açoriano de “barrear” a tampa com grude de farinha e água, descer a panela amarrada com cordas até o centro dos vulcões inativos para cozinhar até desfiar nos vapores quentes, carnes temperadas com especiarias, servidas em dias de festas. Barreada e enterrada nas areias do nosso litoral, sobre fogueiras de brasas, a panela de barro abriga até hoje a herança portuguesa.
Uma das versões, defendida oficialmente pela Prefeitura de Morretes, é a de que o Barreado se originou através dos tropeiros que vinham ao litoral para o comércio de erva-mate. Eles teriam achado no prato o que precisavam em suas longas viagens: um alimento que não se deteriorasse rapidamente e que pudesse ser consumido ao longo de vários dias.
Já a versão defendida pelo professor parnanguara Manoel Viana é a de que os primeiros filhos de portugueses com indígenas ficavam impressionados com o guisado que comiam na casa dos brancos quando iam à cidade. De volta ao sítio, buscavam reproduzir o prato como podiam: cozinhando a carne de peito (a mais barata) por várias horas, a fim de deixá-la macia. Como o cozido secava depressa, eles tampavam a panela, colocando ao seu redor farinha de mandioca com água, para que o vapor não escapasse.
A difusão e popularização do Barreado estão muito ligadas ao Carnaval; ou, como era chamado à época, ENTRUDO. A origem do nome vem do latim introitu, que significa “introdução”. A referência era ao período de introdução à Quaresma. O Entrudo, assim como acontece com o Carnaval hoje, era comemorado nos três dias anteriores ao período da Quaresma - 40 dias que antecedem a Páscoa.
Nesses três dias, a rotina do caboclo do litoral era dançar Fandango e comer. Não havia muita disposição nem tempo para cozinhar. O grau de cozimento do Barreado resistia às 72 horas de festa, e servia perfeitamente para a ocasião, não sendo necessário gastar horas preciosas de folia e de descanso cozinhando. Além disso, o prato não perde seu sabor sendo requentado de um dia para o outro: há quem diga que fica até mais saboroso se consumido dessa forma. Antigamente, um dos rituais da preparação do barreado era também o de soltar foguetes no momento em que a panela fosse destampada.
Dada a sua importância e tradição para Morretes e para o Paraná, o Barreado e a Cachaça Morretiana são tombados como patrimônios imateriais do Estado do Paraná. Localizada a cerca de 70 km de Curitiba, a cidade conta também com a tradicional feirinha, no centro, onde vários produtos derivados da cana e da banana são expostos, além dos souvenirs de Morretes e outros produtos de artesanato.
Turismo
Hoje, Morretes conta com aproximadamente 16 mil habitantes e uma de suas principais atividades econômicas é o turismo. O principal acesso é pela BR 277, mas ainda é possível chegar à cidade de carro ou de ônibus pela Estrada da Graciosa. Uma das viagens mais conhecidas pelos turistas (inclusive internacionais) é a de trem, percorrendo a Serra do Mar, tendo Morretes como destino final. Mas nem sempre a ferrovia foi interessante para o município e sua economia.
A inauguração da Estrada de Ferro em 1885 significou um prejuízo econômico para Morretes, uma vez que ligava Curitiba e outras cidades diretamente ao litoral. Assim, não era necessário que os viajantes e as mercadorias passassem por Morretes antes de chegar ao Porto de Paranaguá, por exemplo.
Atualmente, é um passeio bastante tradicional pegar o trem na rodoferroviária de Curitiba e em cerca de 4 horas chegar até Morretes. No caminho, os turistas apreciam a vista da Serra do Mar.
Entre 2009 e 2017, o número médio de passageiros da Serra Verde Express - empresa que promove o passeio de trem - embarcando ou desembarcando em Morretes foi de 156 mil turistas por ano. Totalizando todos esses anos, foram mais de 1 milhão e 400 mil passagens comercializadas.
Ao centro da imagem, vemos três morros, em alusão aos três morretes que cercam a cidade e que eram a denominação mais antiga da Primeira Capela e do porto - Porto dos Três Morretes. No pé dos morros passa o Rio Nhundiaquara, em cujas margens a cidade nasceu. À esquerda há um ramo de cana-de-açúcar e à direita, uma folha de bananeira. A cana e a banana são dois dos produtos mais abundantes da região e que lhe conferem identidade, como já citado. Na parte inferior do Brasão, além do nome da cidade está escrito “31 de Outubro de 1733”, em alusão à data de medição do terreno que daria origem a Morretes, data essa em que se comemora até hoje o aniversário da cidade; na ocasião da escrita desse texto, o de número 288!
O Brasão e seus elementos representam uma boa síntese da história de Morretes e de sua identidade. Identidade essa que faz parte também da história do Paraná e do Brasil, e que deve ser sempre lembrada e preservada.
Mais fotos da cidade de Morretes:
Texto e pesquisa de Gabriel Brum Perin
Fonte de pesquisa:
Blog de Antonio Marcos Pereira: http://triaquimmalucelli.blogspot.com/
https://cidades.ibge.gov.br/brasil/pr/morretes/historico
https://www.casadaestacaomorretes.com.br/single-post/morretes
https://www.mapadacachaca.com.br/artigos/territorios-da-cachaca-morretes-parana/
https://casapoletto.com.br/cachaca-ouro-de-morretes/
https://www.aen.pr.gov.br/modules/noticias/article.php?storyid=105825
http://www.patrimoniocultural.pr.gov.br/modules/conteudo/conteudo.php?conteudo=259
https://viajala.com.br/blog/passeio-de-trem-curitiba-morretes-precos-dicas
https://folhadolitoral.com.br/cultura-e-entretenimento/festa-feira-movimenta-a-cidade-de-morretes
http://curitibaeparanaemfotosantigas.blogspot.com/2018/06/morretes_7.html
https://especiais.gazetadopovo.com.br/ferrovia-130-anos/
Livros e Trabalhos Acadêmicos:
CAVAGNOLLI, S. M. Morretes: passado sem ruinas. Morretes: Grafica e editora Stella Maris, 1995.
VIANA, M. Paranaguá na História e na tradição. Paranaguá: Gráfica Vicentina, 1976.