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O Memorial Paranista e a preservação de um imaginário paranaense

Em maio de 2021 foi inaugurado em Curitiba o Memorial Paranista, um espaço cultural localizado no Parque São Lourenço, no bairro do mesmo nome. O local conta com um liceu das artes, que oferece um atelier para desenvolvimento de cursos com uma programação artístico-pedagógica, um atelier de escultura e fundição para pesquisas e arte escultural, com o Teatro Cleon Jacques para espetáculos de teatro, música e dança e uma exposição fixa do escultor paranaense João Turin. É inegável o bom gosto de misturar o belo Parque São Lourenço com esculturas monumentais de João Turin. De fato, existe uma sinergia da natureza com a obra do artista. 




 No início do século XX, João Zanin Turin (1878-1949) recebeu uma bolsa de estudos do Governo do Paraná e, junto com o amigo e também escultor Zaco Paraná, partem para a Bélgica para estudar na Real Academia de Belas Artes. Foi lá que ele aprimorou seu trabalho como escultor e descobriu interesse pela temática animalista. O artista foi um dos fundadores do Paranismo, movimento artístico que surgiu na década de 1920 para criar uma identidade visual e, sobretudo, cultural no Paraná. 


Foto: Zaco Paraná e João Turin (à direita), 1900 (Arquivo João Turin, Disponível em LEITE,2014)


No início do século XX, João Zanin Turin (1878-1949) recebeu uma bolsa de estudos do Governo do Paraná e, junto com o amigo e também escultor Zaco Paraná, partem para a Bélgica para estudar na Real Academia de Belas Artes. Foi lá que ele aprimorou seu trabalho como escultor e descobriu interesse pela temática animalista. O artista foi um dos fundadores do Paranismo, movimento artístico que surgiu na década de 1920 para criar uma identidade visual e, sobretudo, cultural no Paraná. 

O Paranismo é paranaense?


Boa parte dos paranaenses, ao serem indagados sobre os maiores símbolos da sua terra, lembrarão do pinheiro araucária. A árvore virou um cânone paranaense por conta da abundância com que era encontrada desde a capital até as praias do Rio Paraná, no extremo oeste do estado. Os paranaenses carregam consigo o apreço não só pela árvore mas também pelas suas sementes: o pinhão. Foi sobre esse alicerce que o Paranismo fincou bandeira. 

Após a Emancipação Política do Paraná em 1853 e a Proclamação da República (1889), as iconografias e os símbolos monárquicos decadentes já não eram mais bem-vindos. Era preciso criar uma identidade regional, baseada no imaginário do povo, para desenvolver uma unidade social e cultural, acompanhando o modernismo tecnológico e intelectual da virada do século. A partir desse ponto de vista, batendo na porta dos anos de 1930, o historiador Romário Martins, o pintor João Ghelfi, o pintor e cientista Frederico Lange de Morretes e o escultor João Turin disseminaram o Movimento Paranista de maneira intelectual, artística e literária. Outros nomes da arte paranaense agregaram-se ao Paranismo, como Theodoro De Bona, Guido Viaro, Arthur Nísio, Miguel Bakun e Estanislau Traple. 

Além da araucária e do pinhão, a erva-mate, a gralha-azul e a onça também foram inspirações artísticas para o movimento, criando uma identificação desses elementos naturalistas com o povo paranaense, que passou a conviver com representações desses símbolos, não apenas em pinturas e esculturas expostas dentro de museus e galerias, mas também na arquitetura.


As famosas calçadas de petit-pavé da Rua XV de Novembro, em Curitiba são um testemunho dessa época. Esse tipo de pavimento, de inspiração europeia, é encontrado por toda a cidade e, em sua maioria, exibe desenhos de araucárias e pinhões, criados por Lange de Morretes. No centro da capital é comum se deparar com prédios antigos que apresentam em seu frontão, ornamentos de pinhões numa estética modernista. O próprio Memorial Paranista está recheado desses detalhes: desenhos de João Turin em exposição que trazem estudos de colunas com estética bastante paranista; as grandes portas laterais do espaço apresentam uma imensa araucária, levando-nos em uma "via sacra" paranista até o exterior do complexo, que nos contempla com um "altar" da gigantesca "Marumbi" de Turin e uma fachada em verde repleta de colunas neoclássicas com pinhões.


Tudo isso contribui para a formação do imaginário sociocultural do povo paranaense, sendo esses simbolismos transmitidos desde cedo nas escolas.

           Isso nos faz pensar um pouco sobre tradições. O historiador britânico Eric Hobsbawm se utilizou do termo "tradição inventada" para definir um conjunto de práticas que propõe "valores e normas de comportamento através da repetição, o que implica, automaticamente, em uma continuidade com relação ao passado". Desta forma, para Hobsbawm, as "tradições inventadas" são uma reação social sobre as novidades de um determinado contexto histórico, sendo repetida de maneira quase obrigatória e andando na contramão das mudanças e avanços do mundo moderno. 

                  Desta forma, o Paranismo levantou muitos questionamentos no que diz respeito aos seus símbolos e objetivos. O escritor Carlos Zatti questiona em seu livro "O Paraná de Bombachas", a falta do "homem" como elemento do Paranismo. Para ele, o personagem principal do movimento deveria ser "o tropeiro, pilchado e de cuia na mão, ou o fazendeiro, o escravo ou peão". Zatti denuncia o esquecimento do trabalhador da terra, oriundo do interior, condenando o movimento a privilegiar os costumes socioeconômicos da capital.

Isso nos permite dialogar também com o periódico "Joaquim", que apresentou 21 edições publicadas em Curitiba, no período de 1946 a 1948. Organizada por Dalton Trevisan, com colaborações de Poty Lazzarotto e inúmeros intelectuais brasileiros, a revista movimentou novos debates acerca do movimento, com críticas ácidas aos artistas paranistas. "Joaquim" questionava o fato do Paranismo surgir como um movimento modernista, apoiando-se no progresso republicano que o país clamava, inspirado no que acontecia na Europa, mas abraçando símbolos não condizentes com o futuro. Para a "Joaquim" parecia pouco coerente levantar uma bandeira com simbolismos paranaenses nos moldes acadêmicos europeus, tendo em vista que parte dos paranistas voltaram ao Brasil oriundos de escolas de artes europeias, as quais puderam frequentar graças às bolsas de estudos patrocinadas pelo Governo do Estado. A revista propunha um debate contra o academicismo da arte paranaense, indagando sobre o real sentido da escolha dos cânones paranistas. 


Se tomarmos como exemplo a representação indígena paranaense, notamos, na exposição no Memorial Paranista, o cuidado de João Turin com o que ele chama de “verdadeiro dono da terra brasileira”. O artista apresenta uma série de obras, sejam esculturas tridimensionais ou em baixo-relevo, que ressaltam o papel do índio não só como guerreiro, mas como portador de cultura e costumes intrínsecos na nossa sociedade contemporânea. Fica claro em suas obras a intenção de mostrar o indígena como personagem complementar à natureza, sendo ele a figura principal da luta pela sobrevivência das nossas matas. É o que se percebe na imponente “Guairacá”, localizada no jardim de esculturas em frente à entrada do Memorial: a imagem de um índio portando um arco com um lobo ao seu lado, tal qual um guardião. 


Exposição permanente das esculturas em baixo relevo retratando o cotidiano do índio e sua relação com a terra.

Desta forma, o Paranismo levantou muitos questionamentos no que diz respeito aos seus símbolos e objetivos. O escritor Carlos Zatti questiona em seu livro "O Paraná de Bombachas", a falta do "homem" como elemento do Paranismo. Para ele, o personagem principal do movimento deveria ser "o tropeiro, pilchado e de cuia na mão, ou o fazendeiro, o escravo ou peão". Zatti denuncia o esquecimento do trabalhador da terra, oriundo do interior, condenando o movimento a privilegiar os costumes socioeconômicos da capital.

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O Paranismo, portanto, teve que enfrentar – ou enfrenta até hoje – as acusações de responder por interesses da elite da capital paranaense, esquecendo de parte importante do Paraná: os trabalhadores da terra, as mulheres, os índios e os negros.

           É inegável no movimento paranista a influência de outros artistas, como Alfredo Andersen, e a beleza de paisagens paranaenses por ele registradas antes da virada do século XX. É inegável, também, a riqueza natural de um estado campeiro e tropeiro, que esbanja de flora e fauna diversificadas e importantes para o país. É inegável ainda que devemos contar com espaços culturais que preservem a nossa memória como o Memorial Paranista faz. Mas o Paraná vai além dos petit-pavés da capital, mostrando a cara das ruas e calçadas avermelhadas pela terra, no interior do estado. Tem a cara dos Guaranis, Caingangues e Xetás que lutam contra o agronegócio em suas reservas de leste a oeste. O Paraná precisa ter a cara do seu povo e cabe aos paranaenses preservar isso como um "novo" Paranismo.

Texto e pesquisa: Felipe Negreli e Cyntia Wachowicz

Referências

 

CORDOVA, Maria Julieta Weber. O processo de produção historiográfica paranaense e a construção de uma identidade regional. In: ENCONTRO REGIONAL DE HISTÓRIA, 9., 2004, Ponta Grossa. Anais [...]. Ponta Grossa: Anpuh, 2004. Disponível em: http://www.snh2013.anpuh.org/resources/anpuhpr/anais/ixencontro/comunicacao-individual/MariaJWCordova.htm. Acesso em: 10 mar. 2022.

 

GALANTIN, Daniel Verginelli; GRABOWSKI, Franciele do Couto. Joaquim: O Periódico que ousou trazer o mundo para a Província. Revista Vernáculo, Curitiba, n. 23-24, p. 33-53, 2009.

 

HOBSBAWM, Eric; RANGER, Terence (org.). Invenção das tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984.

 

KANIGOSKI, Luiz Carlos (org.). Movimento Paranista. Universidade Federal do Paraná, s.d. Disponível em: https://docs.ufpr.br/~coorhis/kimvasco/paranismo.html. Acesso em: 10 mar. 2022.

 

NOGUEIRA, Daliane. As marcas do paranismo na arquitetura de Curitiba. Gazeta do Povo, 2016. Disponível em: https://www.gazetadopovo.com.br/haus/arquitetura/as-marcas-do-paranismo-na-arquitetura-de-curitiba/. Acesso em: 10 mar. 2022.

 

OLIVEIRA, Luiz Claudio Soares. Joaquim contra o Paranismo. 2005. Dissertação (Mestrado em Estudos Literários) – Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2005. Disponível em: http://www.educadores.diaadia.pr.gov.br/arquivos/File/2010/artigos_teses/2010/Historia/dissertacoes/8oliveira_luizclaudio_dissertacao.pdf. Acesso em: 10 mar. 2022.

 

PARANISMO. João Turin, s.d. Disponível em: https://joaoturin.com.br/turin_arq_paranismo/. Acesso em: 10 mar. 2022.

 

PINHEIRO, pinhão, erva-mate, onça e gralha azul são símbolos do Movimento Paranista. Prefeitura Municipal de Curitiba, 2021. Disponível em: https://www.curitiba.pr.gov.br/noticias/pinheiro-pinhao-erva-mate-onca-e-gralha-azul-sao-simbolos-do-movimento-paranista/58948. Acesso em: 10 mar. 2022.

 

TRISKA, Camile. Curitiba é Arte: O que foi o Movimento Paranista? Curitiba de Graça, 2021. Disponível em: https://curitibadegraca.com.br/curitiba-e-arte-o-que-foi-o-movimento-paranista/. Acesso em: 10 mar. 2022.

 

ZANELLA, Daniel. Imprensa: Curitiba revisitada. Cândido, s.d. Disponível em: https://www.bpp.pr.gov.br/Candido/Pagina/Imprensa-Curitiba-revisitada. Acesso em: 10 mar. 2022.

 

ZATTI, Carlos. O Paraná de Bombachas. Curitiba: IHGPR, 2013. Disponível em: https://www.google.com.br/books/edition/O_ParanÁ_De_Bombachas/Rv9QBQAAQBAJ?hl=pt-BR&gbpv=1&dq=O+paraná+de+bombachas&printsec=frontcover. Acesso em: 10 mar. 2022.

 

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