Rua São Francisco, a antiga Rua do Fogo
A Rua São Francisco, no centro histórico da cidade de Curitiba, é uma das mais antigas da cidade. No entanto, nem sempre ela teve nome de santo.
Surgiu como um prolongamento do Largo da Ordem, com seu crescimento limitado por condições geográficas (as bacias do Rio Belém e do Rio Ivo). Na década de 1830, sua denominação era Rua do Hospício por abrigar o Hospício dos padres da ordem de São Francisco das Chagas. O primeiro registro que encontramos da rua com o nome de Rua do Fogo é de 1835, em uma ata da Câmara Municipal de Curitiba.
Na década de 1850, as vias consideradas mais importantes e com maior circulação de pessoas na cidade de Curitiba eram 12, todas no entorno do que hoje chamamos de centro histórico:
Rua Direita, Rua do Rosário,
Rua da Entrada,
Rua
Fechada,
Estrada da Marinha, Rua da Carioca, Rua do Nogueira, Rua do Comércio,
Rua das Flores,
Rua do Saldanha,
Rua da Assembleia e a
Rua do Fogo. Esta última é a atual Rua São Francisco.
Rua do Fogo
À época (século XIX), ela levava esse nome por conta da “balbúrdia” que nela acontecia, conforme relata Valério Hoerner Júnior em seu livro “Ruas e Histórias de Curitiba”:
As profissionais do ramo (prostitutas), portanto, aglomeravam-se naquela rua sem que a administração municipal as contivesse ou reunisse forças para conter tão inacreditável ousadia. A rua passou a pertencer a ninguém e mesmo aqueles que possuíam direitos imobiliários tratavam logo de procurar outra freguesia. O nome porém era oficioso. Do fogo por causa da balbúrdia, mas como se encontrava em estado rudimentar de urbanização, seria bem melhor que ficasse por ali mesmo, sem misturanças desagradáveis. Afinal, Curitiba era uma cidade com reputação ilibada (p. 65).
Na década de 1860 podemos observar iniciativas que tinham como objetivo dar um novo aspecto à tão mal falada Rua do Fogo. A começar por uma obra de aterro e empedramento macadamizado da Rua do Fogo, que começou a ser discutida entre 1863 e 1864. Sua pavimentação é uma das primeiras da capital e a rua segue até hoje ladrilhada de pedras, sem ser asfaltado, o que a faz ser um dos últimos remanescentes da paisagem colonial brasileira em Curitiba. Outro remanescente da paisagem colonial que também está na hoje Rua São Francisco é a Casa Romário Martins, cuja história você pode conferir
clicando aqui.
Na mesma linha de raciocínio de promover uma mudança na rua, alterou-se o seu nome em 1871, quando passou a se chamar Rua de São Francisco, em alusão à Igreja da Ordem, cujo nome oficial é Igreja da Ordem Terceira de São Francisco das Chagas. Essa mudança buscou também, através do respeito que o catolicismo e o nome do Santo impunham, moralizar a rua e a região.
Além disso, a rua tinha também muitos comércios, como podemos atestar por anúncios de jornais de época, que iam desde a venda de escravizados, restaurantes, hotéis, até roupas e porcelanas.
Ao longo de sua história a rua sempre teve um aspecto mais comercial do que residencial. No século XX, quando a rua já se chamava São Francisco, surgem alguns edifícios e empreendimentos que até hoje estão na paisagem urbana da rua.
Livraria João Haupt
Um desses empreendimentos é o da Livraria e Papelaria João Haupt, uma das mais antigas e tradicionais de Curitiba. A papelaria continua no mesmo lugar e no mesmo edifício, porém com modificações. Hoje ela ocupa a esquina da Rua São Francisco com a Barão do Serro Azul, coisa que não acontecia antigamente e se tornou possível devido à demolição de um prédio que ficava na esquina, onde funcionou uma das primeiras sedes do Clube Curitibano na década de 1880, segundo a historiadora Cassiana Lacerda.
Além de sede alugada do Clube Curitibano - que à época se escrevia “Club Curitybano” - o edifício foi também Delegacia Fiscal do Tesouro Federal. As delegacias fiscais foram criadas a partir de um decreto de 1892, quando o Brasil já era República. No próprio prédio da Delegacia Fiscal havia um brasão da República. Portanto, é possível afirmar que o prédio teve essa utilização desde, pelo menos, 1892. Não se sabe a data exata, mas posteriormente o edifício foi demolido e não houve nenhuma construção no espaço em que estava, fazendo com que a Livraria João Haupt ocupasse a esquina.
A família Haupt chegou ao Brasil em 1892, vinda da cidade de Sternberg, no antigo Império Austro-Húngaro (atualmente República Tcheca). Johann Haupt (cujo nome abrasileirou-se para João) tinha 16 anos quando chegou com seus pais Josef e Adelheid. João desde cedo dedicou-se ao estudo da música. Fez parte, inclusive, da Orquestra Sinfônica da Catedral de Curitiba.
Os pais de João voltaram para a Europa e ele passou a morar com o maestro Carlos Frank, cuja família havia vindo em 1888 de Römerstadt, cidade vizinha à Sternberg, também no então Império Austro-Húngaro. Em Curitiba, Haupt se tornou professor de música, dando aulas particulares de piano, violino e cítara. Após casar-se com Bertha Juscksch em 1904, Haupt buscou diversificar suas atividades e iniciou, de modo artesanal em sua residência, uma oficina de cartonagem.
Em 1911, abriu a Livraria João Haupt & Cia na Rua São Francisco, ao lado da Delegacia Fiscal. O edifício foi construído no mesmo ano e contava com uma área residencial no segundo piso, onde morava a família de João Haupt. No térreo havia o espaço para a livraria.
A livraria funciona até hoje na esquina das ruas São Francisco e Barão do Serro Azul, sendo uma das mais tradicionais de Curitiba, agora com uma porta de entrada na Barão do Serro Azul e não na São Francisco, como costumava ser quando o edifício não ocupava a esquina. Além disso, a João Haupt & Cia. se ampliou e hoje possui várias sedes pela capital paranaense.
Restaurante São Francisco
Atualmente uma das características e um dos atrativos da Rua São Francisco são os estabelecimentos gastronômicos. O mais antigo deles leva o próprio nome da rua: Restaurante São Francisco, fundado em 1955 pelo espanhol Secundino Muiños Suarez. Fazendo jus à sua origem, um dos pratos mais tradicionais do restaurante é a
paella - prato típico espanhol, preparado em recipiente especial, que mistura arroz, legumes, peixes e crustáceos.
Edifício Dona Rosa
De arquitetura mais recente se comparada aos casarões da rua, na esquina da São Francisco com a Rua Riachuelo há o Edifício Ângela Rosa Perrone, um dos primeiros arranha-céus de Curitiba. Construído entre 1950 e 1954, no período de comemorações do centenário da Emancipação Política do Estado do Paraná (1953), o edifício é símbolo de um Paraná que buscava se modernizar, o que foi manifestado através de sua arquitetura com traços mais modernistas e a criação do Centro Cívico. Para mais informações sobre o Edifício Dona Rosa,
clique aqui.
Casa do escultor Ricardo Tod
Outro espaço que exemplifica os usos atuais da rua é a “SFco179”, que se define como “Projeto de regeneração de um espaço no centro histórico. A SFCO179 tem cafés especiais, gastronomia, drinks, fábrica de chocolate e área de eventos”. O edifício ocupado pelo empreendimento foi residência do famoso escultor curitibano Ricardo Tod, falecido em 2005 aos 42 anos. A mais conhecida obra de Tod é o Cavalo Babão, localizado no Largo do Rosário, coração do centro histórico de Curitiba. Ali funcionou também uma metalúrgica da família dos imigrantes ingleses Tod.
Jokers Pub
Desde 2001, em um casarão vermelho, funciona o Jokers Pub - bar/restaurante com a temática de palhaços. O edifício em que o Jokers está, no entanto, é mais do que centenário. Como nos mostra uma planta arquitetônica da época, sua construção é de aproximadamente 1912 e seu proprietário inicial foi Frederico Rummert.
O Jokers tem a tradição de receber todo tipo de expressão cultural, desde apresentações musicais, até peças de teatro, de comédia e mágica sendo, inclusive, palco de início de carreira de atores e atrizes com projeção nacional. Para mais informações sobre o Jokers,
clique aqui.
Palco de Filme
Tanto o Jokers quanto a Rua São Francisco possuem uma estética que podemos chamar de “rústica” - ladrilhada com pedras - e que é apreciada por muitas pessoas e rende bonitas fotos. Na rua há, inclusive, argolas para se amarrarem os cavalos, que remetem ao tempo de quando o trânsito era por meio de carroças movidas a tração animal. Tanto é assim que o ambiente da Rua São Francisco e o do Jokers Pub foram escolhidos para ser cenário do Filme Estômago (2007). No filme, a rua remete a seus tempos de Rua do Fogo - é retratada como um ambiente de prostituição em que está a mulher pela qual o protagonista se apaixona. Para saber de mais lugares da cidade que aparecem no filme,
clique aqui.
Usos da Rua
Antigamente a extensão da Rua São Francisco era maior, indo desde a Igreja do Rosário, descendo pelo Largo da Ordem, até a atual Rua Presidente Faria. O trecho entre a Igreja do Rosário e a Igreja da Ordem mudou de nome e hoje é a Rua Doutor Claudino dos Santos, com trânsito exclusivo para pedestres e onde aos domingos há a feirinha do Largo da Ordem. O trecho restante segue sendo chamado “Rua São Francisco''.
No início da década de 2010 a região do entorno do Paço Municipal passou por diversas ações de revitalização, como a troca de calçadas, postes e lâmpadas. A partir disso a Rua São Francisco se tornou um
point da noite curitibana. De início, essa revitalização funcionou, conforme relata reportagem do jornal Gazeta do Povo: “Funcionou bem. Muito bem. Se por alguns anos a São Francisco era uma rua escura evitada a qualquer preço após o pôr-do-sol, tornou-se um espaço para curtir com os amigos notívagos.”
Alguns anos depois, no entanto, moradores e donos de estabelecimentos da região começaram a se queixar. O movimento caiu e, como justificativa, foram citadas “a falta de apoio do poder público, a alta criminalidade, questões financeiras, a intransigência de quem não quer que nada mude nunca” - o relato é trecho de uma nota do Negrita, bar que funcionava na rua e fechou por volta de 2018.
Atualmente, em 2022, a rua parece estar se recuperando, com um movimento razoável no período noturno. Ela passou por outra revitalização em 2019 e ganhou nova iluminação em 2022. Mas não é o mesmo do que muitos consideram o auge da rua - por volta de 2015, 2016 - e ainda existem muitos imóveis históricos que estão sem utilidade e/ou mal preservados, o que deveria receber maior atenção do poder público.
Abaixo, imagens de outras construções históricas da rua sobre as quais conseguimos alguma informação.
Texto de Gabriel Brum Perin
Fontes de pesquisa:
NOGUEIRA, Cíntia Negrão. São Francisco, uma rua da Paisagem Urbana da Curitiba antiga. Trabalho apresentado para obtenção do título de Especialista no Curso de Pós Graduação em Projeto e Paisagem Urbana, Departamento de Arquitetura e Urbanismo, Setor de Tecnologia, Universidade Federal do Paraná. Curitiba, 2012. Disponível em: https://acervodigital.ufpr.br/bitstream/handle/1884/53485/R%20-%20E%20-%20CINTIA%20NEGRAO%20NOGUEIRA.pdf?sequence=1&isAllowed=y
Dezenove de Dezembro, 2 de jan. de 1864. Disponível em: https://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=416398&pasta=ano%20186&pesq=&pagfis=3384
Dezenove de Dezembro, 27 de maio de 1854. Disponível em: https://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=416398&pasta=ano%20185&pesq=&pagfis=39
Dezenove de Dezembro, 29 de jul. de 1854. Disponível em: https://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=416398&pasta=ano%20185&pesq=&pagfis=84
Dezenove de Dezembro, 1 de abr. de 1854. Disponível em: https://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=416398&pasta=ano%20185&pesq=&pagfis=4
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Livro “Johann Haupt - O professor de música. João Haupt - O empresário”, de Paulo Affonso Grötzner. 2004. Disponível em: https://www.amigbrasil.org.br/wp-content/uploads/2018/11/J.Haupt-Biografia-Completa_OK.pdf
https://www.fotografandocuritiba.com.br/2017/08/sao-francisco-278.html
https://www.gazetadopovo.com.br/bomgourmet/restaurante-sao-francisco-em-curitiba/
https://www.gazetadopovo.com.br/haus/urbanismo/por-que-a-revitalizacao-da-rua-sao-francisco-falhou/
Boletim do Archivo Municipal de Curitiba. DOCUMENTOS PARA A HISTÓRIA DO PARANÁ. Publicação mensal sob a Direcção de Francisco Negrão. Vol. XLVII. Curitiba: Impressora Paranaense, 1930. Disponível em: https://www.administracao.pr.gov.br/ArquivoPublico/Pagina/Boletins-do-Archivo-Municipal-de-Curitiba