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Os Xetá: 
Uma história sob os escombros da negligência 
Afinal, quem foram os índios da etnia Xetá? 
Caracterizá-los é uma tarefa difícil, pois poucas informações foram produzidas sobre eles e, em grande medida, os estudos estão apenas na esfera acadêmica - apesar das pesquisas terem aumentado significativamente a partir do século XXI. Por isso, pode-se dizer que os Xetá foram praticamente excluídos da história do Paraná, por culpa não somente dos pesquisadores, mas também das políticas do Estado paranaense ao longo do século XX. Nesse período, as populações indígenas como um todo, incluindo os Xetá, foram entendidas como uma barreira à modernização do estado, um empecilho “selvagem” e “primitivo” à realização da história dos “civilizados” e do capital.

Visto a importância de contar essa história, o objetivo deste artigo especial, é de construir uma história dos Xetá oposta a esse discurso anti-democrático visto anteriormente, de forma a redimir o passado daqueles que ficaram soterrados sob escombros, ou melhor, sob as grandes máquinas agrícolas. 
A identidade Xetá: nomenclatura ou autoidentificação?

O termo Xetá não é uma categoria nativa, mas sim uma palavra usada pelos pesquisadores, a partir da década de 50, para defini-los. O responsável por cunhá-la foi Kozák, engenheiro mecânico Tcheco que veio ao Brasil para trabalhar para uma multinacional e em suas viagens aos interior do estado, acabou largando a profissão para registrar grande parte do material audiovisual sobre os índios das etnias Xetá, Kaingang e Guarani, juntamente com o professor José Loureiro Fernandes, do Departamento de Antropologia da Universidade Federal do Paraná. 

Na época, Kózak chamou os indígenas de Hetá, entretanto, não se trata de uma palavra inventada, pois Hetá faz parte do vocabulário dos Xetá, cujo significado seria muito (os, as), bastante; porém, apesar de nativa, ela não era utilizada entre os indígenas para se auto identificarem. Os Xetá também já foram chamados por outros nomes, como Chetá, Ssetá, Aré, Botocudo, entre outros, porém Hetá e sua variação Xetá são os mais empregados. 

Local de origem 

Entendidos pelos pesquisadores como falantes da língua Tupi-Guarani, os Xetá são originalmente um povo indígena da região noroeste do Paraná, no local conhecido como Serra dos Dourados. De maneira mais específica, eles viviam ao longo do rio Ivaí (na margem esquerda até a sua foz no rio Paraná) e dos seus afluentes, onde sua população era de 400 habitantes. Atualmente, essa região é localizada ao redor da cidade de Umuarama. 

Para alguns estudiosos do tema, o primeiro contato entre os Xetá e a população não-indígena é relatado por um viajante europeu no Paraná. Thomas Bigg -Whitter, engenheiro inglês a trabalho no Estado, também  produziu um relato sobre sua jornada, publicado no Brasil com o título "Novo Caminho no Brasil Meridional a Província do Paraná".
Em uma de suas passagens, descreve a existência de um grupo indígena no norte do Paraná, chamado por ele de Botocudo; esse nome estaria relacionado aos adornos labiais utilizados por essa etnia. Como esse aspecto é semelhante ao dos Xetá, muitos entendem que esses dois grupos, na verdade, são um só. Porém, não é certo, que esses indígenas referidos sejam os Xetá; alguns estudiosos sugerem que sim, outros tendem a vê-los como descentes dos Botocudos ou, no máximo, próximos culturalmente.
A maneira como ocorreu a motivação para o contato com os Xetá não foi a das melhores. Somente na década de 1940 que os Xetá se tornaram mais conhecidos, nesse período, o Estado do Paraná incentivou a migração e colonização do noroeste do Estado, visto então como um território livre, produtivo e despovoado a ser explorado. É claro, essa iniciativa não considerava as pessoas que ali moravam. O incentivo à expansão da cafeicultura e das fazendas de criação de gado ocorria por meio das companhias de colonização e imigração: eram agências que obtinham terras do governo a baixo custo, loteavam-nas e promoviam a sua ocupação. No noroeste, por exemplo, a principal foi a Colonizadora Suemitsu Miyamura & Cia.  A ocupação resultou em desmatamento, latifúndio e extermínio dos povos que ocupavam aquele território.
O grande nome das campanhas de ocupação territorial no oeste paranaense foi o então governador Moysés Lupion, nas décadas de 40 e 50, que ajudou a promover o aumento estratosférico de vendas de terras nessa região.
 
Através do Departamento de Geografia, Terras e Colonização, Lupion juntou os interesses do governo com a sede de expansão das empresas. O negócio deu certo, porém, gerou conflitos entre população, posseiros e governo, pois uma das empresas beneficiadas pela compra e venda de terrenos, a famosa Clevelândia Industrial e Territorial (CITLA), era uma sociedade do próprio governador.

A ocupação "bem sucedida" resultou em desmatamento, grilagem, latifúndio e extermínio dos povos indígenas e não indígenas que ocupavam aquele território

As pessoas comuns foram as mais afetadas nesse processo, incluindo os Xetá, suas terras foram vendidas pois não estavam demarcadas e reconhecidas pelo governo, o que fez com que perdessem a sua principal forma de subsistência: a extração de vegetação nativa.   Paralelamente a esse processo, o Serviço de Proteção ao Índio (SPI) tomou caso das notícias sobre a existência de uma população indígena no noroeste, em 1949. Além disso, a partir de 1954 os pesquisadores da Universidade Federal do Paraná, como José Loureiro e Vladimir Kozák, deslocaram-se à Serra dos Dourados para estudá-la e promover a sua preservação. Porém, entre esse período e a criação do Parque Nacional de Sete Quedas (1961), houve uma grande dizimação dos Xetá; esse processo foi iniciado antes mesmo do contato com os não-indígenas, porém foi sumariamente intensificado depois da chegada das frentes colonizadoras.
Por conta disso, mais de 90% da etnia Xetá desapareceu. A causa das mortes e extinção dos Xetá vão desde a intoxicação alimentar e envenenamento, até a doenças infectocontagiosas como gripe, sarampo e pneumonia, problemas decorrentes do contato com os invasores. É claro, boa parte do extermínio foi fruto de armas de fogo, queima de aldeias, rapto de crianças e outras ações das pessoas que se apossaram ilegalmente de suas terras.   
O Serviço de Proteção ao Índio, José Loureiro, Vladimir Kozák e a extinção dos Xetá 

A atuação do Serviço de Proteção ao Índio a partir de 1949 foi uma decorrência direta das ações da Colonizadora Suemitsu Miyamura & Cia. Esta companhia noticiou a  presença de indígenas na região da Serra dos Dourados ao SPI e posteriormente capturou alguns deles, destinando-os a esse órgão de proteção. De um lado, a empresa pedia a remoção dos indígenas na região; de outro, o SPI tentava reconhecer e analisar esses indígenas, até então desconhecidos.  

É nesse contexto que entra a figura de José Loureiro Fernandez e Vladimir Kozák. Se, até 1954, o SPI não havia conseguido chegar aos Xetá, depois de 1954 os contatos se tornaram possíveis. Isso pois nesse período seis homens indígenas nus (Xetá) se deslocaram a Fazenda Santa Rosa, na Serra dos Dourados, propriedade do então Deputado Antônio Lustosa de Oliveira, para pedir ajuda contra a invasão ocorrida em suas terras. Para lá dirigiram-se essa Loureiro e Kozák, onde puderam, guiados pelas informações desses indígenas, tomar informações sobre onde estavam o restante da etnia.
Assim, de 1954 em diante as expedições à Serra dos Dourados por José Loureiro e Vladimir Kozák foram constantes, algo que permitiu a constituição de um acervo imenso de imagens e documentos sobre os Xetá pelo cineasta tcheco, além de inúmeras pesquisas científicas. Juntamente com eles, participaram o linguista Aryon Dall’lgna Rodrigues e a arqueóloga Annette Laming Emperaire, vinda do Museu do Homem de Paris (para onde o documentário sobre os Xetá produzido por Kozák foi destinado originalmente).

Essas viagens para produção científica e documentação dos Xetá se prolongaram até o ano de 1961; porém, depois disso, tiveram de ser abruptamente interrompidas. A situação era acachapante: apesar das expedições, as companhias de terra continuaram a exercer sua força na região, tanto a Colonizadora Suemitsu Miyamura & Cia quanto a recém chegada Companhia Brasileira de Colonização e Imigração (Cobrinco). As notícias eram frequentes sobre queimadas e invasão de terras, o que obrigou aos Xetá (os que resistiram) à fugirem para outras regiões ou etnias, como para os Kaigang. Alguns foram capturados e destinados ao SPI, enquanto outros foram vistos morando nas ruas de Umuarama. Desse modo, o que antes compreendia naturalmente terras indígenas se transformou um local onde todos os espaços eram propriedades particulares ligadas à agricultura.  
A negligência à população Xetá se mostra ainda maior quando se analisam as ações do Governo do Paraná. Em 1955, o deputado Antônio Lustosa fez um requerimento legislativo para transformação da Serra dos Dourados em um Parque Estadual Florestal. Depois de aprovado na Câmara, o projeto foi vetado por Moysés Lupion sob a justificativa de que não havia terras para a concretização. Depois disso, somente em 1961 houve uma nova iniciativa legislativa, dessa vez capitaneada por Loureiro, que resultou na criação do Parque Nacional das Sete Quedas, através de um decreto presidencial. Porém, já era tarde: em 1961, muito pouco do que havia tinha restado, e o Parque se mostrou uma forma insuficiente para restaurar a cultura e a memória Xetá.  

A maioria dos descendentes Xetá morreu durante a década de 70. O grupo que resistiu ao tempo (atualmente, quatro pessoas) teve de viver distante das referências territoriais e culturais de seu passado. Desse modo, extinguiu-se, pela negligência (do Governo e do SPI) e pelos interesses materiais (das companhias), o último grupo indígena com o qual os paranaenses tiveram contato, e talvez o que mais conservou os aspectos do passado da Paraná. 
A importância da história indígena. 

Apesar dessa trágica história, é fundamental entender os Xetá pelo prisma da resistência, da coragem e da valentia. Afinal, mesmo com tudo conspirando contra, até mesmo por parte dos cientistas (pois estes, mesmo tendo feito seu trabalho de valorização da cultura Xetá, foram incapazes de preservá-la suficientemente) a etnia permaneceu viva no tempo, desde a colonização no século XVI aos dias atuais. É revigorante a forma como os Xetás mantiveram a sua sociedade em pé até o século XX, e mais, a maneira como, depois de superado o processo de apropriação de suas terras, reavivaram o seu passado. 
Desde o final do século XX, tem sido realizado um projeto de reafirmação da memória indígena através do contato entre os descendestes Xetás e o seu passado. Em 1999, havia oito descendentes dos Xetá; através do Instituto Socioambiental em Curitiba, nesse ano foi organizado o “Encontro Xetá: Sobrevivente do Extermínio”, onde, além de reverem suas fotos da década de 50 tiradas por Kozák, os Xetás sistematizaram reivindicações junto à FUNAI, para indenização contra o processo de violência que sofreram e para a retificação de seus nomes indígenas no registro civil.

Apesar da tentativa de deixá-los fora da História do Paraná, ocultados por uma obscura nuvem de interesses autoritários e excludentes, os Xetá lutaram (e lutam) para fazer parte dela, mesmo que à contragosto das elites.


Texto e pesquisa: Gustavo Pitz  
Fontes
Instituto Socioambiental: 
https://pib.socioambiental.org/pt/Povo:Xet%C3%A1, por Carmen Lucia da Silva; 


Biblioteca Nacional: 
http://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital/ 

Artigos:  
“De documentos etnográficos a documentos históricos: a segunda vida dos registros sobre os Xetá (Paraná, Brasil)”, por Edile Coffaci de Lima. 

“Loureiro Fernandes e os Xetá”. Arqueologia, Número especial, Curitiba, v. 3, p. 197-216, 2005, por Carmen Lucia da Silva. 
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