A casa de David Carneiro e o Memorial que não é Memorial
Aristóteles certa vez disse que “a arte imita a vida''. A premissa se mostrou tão verdadeira que poderíamos citar N exemplos de como a realidade influenciou criações artísticas ao longo da história. Um desses casos está no clássico Os Maias (1888), romance do escritor português Eça de Queiroz. Já no início do livro, o autor constitui um espaço que será central em toda a narrativa: a casa Ramalhete. Toda a arquitetura dessa casa ficcional foi inspirada no Palácio de Sabugosa, construção colonial seiscentista de Lisboa, que nos anos de 1880 era propriedade de António Maria Vasco, o então Conde de Sabugosa (de quem Eça era amigo).
Séculos depois, o escritor irlandês Oscar Wilde percebeu que a afirmação de Aristóteles era, apesar de verdadeira, insuficiente. Por isso, ele disse que “a vida imita a arte muito mais do que a arte imita a vida”. Essa premissa atualizada se mostrou novamente certeira. Para exemplificar, vejamos o caso de um patrimônio histórico inspirado no próprio romance Os Maias: o Memorial David Carneiro.
Quem foi David Carneiro?
David Antonio da Silva Carneiro foi um historiador e engenheiro civil curitibano nascido em 1904. Filho do Coronel David Antonio Carneiro, passou a administrar a Ervateira Americana, engenho de erva-mate que era de sua família, quando da morte de seu pai em 1927. Carneiro também foi professor de Economia da Universidade Federal do Paraná, diretor da Escola de Música e Belas Artes, e ao longo da vida escreveu vários livros de história, principalmente sobre a História do Paraná.
Nasceu na casa de seus pais, que ficava na Rua Matheus Leme, ao lado do hoje Museu Alfredo Andersen. Após um incêndio devastador atingir a Ervateira em 1940, David Carneiro planejou a construção de uma residência para ele e sua família em parte do terreno do antigo engenho. A Casa David Carneiro foi inaugurada em 1949, de frente para a rua Brigadeiro Franco, quase na esquina com a Comendador Araújo.
O Museu Coronel David Carneiro
Desde criança, David Carneiro já tinha o interesse de preservar objetos do passado. O que ajuda a explicar isso é a participação de seu avô na Revolução Federalista (1893-1895), o que lhe rendeu boas histórias às quais ouvia atentamente quando criança. Além disso, David Carneiro casou-se com Marília Suplicy de Lacerda, integrante de família tradicional da Lapa. A Lapa, lembremos, foi palco da Revolução Federalista, tendo lá acontecido o Cerco da Lapa, acontecimento até hoje muito rememorado na cidade. As conversas com seu sogro lapeano também ajudaram David a se interessar cada vez mais pelo conflito.
Esse crescente interesse fez com que ele passasse a ir atrás de todo tipo de objeto relacionado à Revolução Federalista. David foi criando, assim, um acervo pessoal, que reunia não apenas itens da Revolução. mas de várias partes do mundo, que eram obtidos através de viagens de seu pai. Em 1928, David Carneiro inaugura o Museu Coronel David Carneiro, em homenagem ao seu pai, falecido no ano anterior. Com o passar dos anos, o acervo do museu foi crescendo cada vez mais, chegando a mais de 6 mil peças, entre elas quadros (muitos retratos de personalidades paranaenses), esculturas, obras de arte, instrumentos musicais, armaria, indumentária, instrumentos de castigo, ferramentas, utensílios, porcelanas, documentação e numismática.
O Museu era particular e David Carneiro o mantinha com o próprio bolso. O historiador era receptivo com as visitas e sempre estava disposto a contar história por história de cada peça de sua coleção, uma das mais completas daquela época. A instituição também tinha sala de exposições, a Capela da Religião da Humanidade e um auditório, no qual aconteciam reuniões positivistas, corrente da qual o intelectual participava. Por muitos anos, o Museu esteve no mesmo terreno da casa de David, mas do lado oposto e em outro prédio, voltado para a rua Comendador Araújo.
Manter o espaço, porém, não era fácil. Os pedidos de ajuda ao poder público foram muitos, mas as promessas de apoio financeiro para a manutenção do museu não se concretizavam. Carneiro se queixava disso:
ninguém se interessa em assumir os encargos que a preservação da memória
nacional ou local exigem [...]. Para mim, manter o Museu é algo onerosíssimo.
Nunca tive, realmente, ajuda do governo, seja federal, estadual ou municipal, a não
ser no período de Ivo Arzua como prefeito de Curitiba. Ele nunca me cobrou
imposto, me deu isenção.
Mesmo com essas dificuldades, o Museu Coronel David Carneiro foi declarado de utilidade pública por lei estadual, votada em 27 de fevereiro de 1929. Além disso, anos mais tarde, o acervo do museu foi escolhido pelo Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN, atual IPHAN) para integrar coleções de interesse nacional.
Mas a contribuição de David Carneiro para a preservação do Patrimônio Histórico Brasileiro vai muito além disso. Na década de 1930, ele foi designado para liderar a Superintendência do SPHAN da região Sul do Brasil e ajudou na listagem de patrimônios históricos dos estados do Paraná, Rio Grande do Sul e Santa Catarina. Participou ainda das restaurações das ruínas jesuíticas de São Miguel das Missões, no Rio Grande do Sul, e da Igreja Matriz da Lapa, no Paraná.
Por conta de seu interesse pela Revolução Federalista e pelo Cerco da Lapa, em 1944 David Carneiro também idealizou o Pantheon dos Heróis da Lapa e inaugurou o Museu Histórico da Lapa, que funcionava na Casa de Câmara e Cadeia.
Abaixo seguem algumas fotos do interior do Museu David Carneiro, todas do acervo de Paulo José da Costa.
A Casa David Carneiro: início glorioso
Depois do incêndio na Ervateira Americana, David Carneiro morou com sua esposa e seus filhos no prédio do qual ele próprio era dono, na Av. Luiz Xavier (onde atualmente é a Galeria Tijucas). O edifício se chamava “Eloísa”, nome em homenagem a sua filha que faleceu precocemente em 1938. Ali, Carneiro fez o projeto arquitetônico de sua futura casa, cuja construção foi finalizada em 1949.
Como dissemos no início do texto, todo o desenho da casa foi inspirado na casa Ramalhete, do romance Os Maias (1888) de Eça de Queiroz, diplomata e um dos mais importantes escritores da língua portuguesa, que escreveu o também famoso Crime do Padre Amaro (1875). A história de Os Maias foi, inclusive, adaptada para as telas brasileiras, em minissérie da Rede Globo de 2001. O estilo da residência segue o padrão neocolonial, e foi projetado com traços da arquitetura barroca. O Palácio de Sabugosa, construído em Lisboa entre 1588 e 1605, foi referência tanto para Eça quanto para David Carneiro.
A arquitetura barroca portuguesa se notabilizou pelos edifícios de revestimento azulejado, por colunas, rodapés e contorno de janelas em pedra, além de formas ovais, paredes grossas e grandes ambientes internos com murais e peças em madeira com forte presença da cor dourada. Esse é o estilo do Sabugosa, e muitos de seus aspectos podemos ver na casa de David Carneiro, como o revestimento em pastilhas na cor rosa, o brasão acima da porta em azulejo, os traçados curvilíneos em pedra e os luxuosos cômodos.
Num período em que as edificações de Curitiba seguiam a um padrão eclético, a residência dos Carneiro se singularizou, sendo uma das únicas neocoloniais de Curitiba. Também podemos dizer que é um dos poucos locais do Brasil com inspiração direta na obra de Eça de Queiroz.
Talvez por toda essa influência histórica (coisa de historiador), inicialmente David Carneiro pensava que a casa, na verdade, seria a sede do Museu. Disse ele: “Na década de 40, construí esta casa em estilo barroco para colocar o acervo”. Entretanto, a família provavelmente gostou tanto do resultado que decidiu morar nela. Somente depois, em 1955, outra sede (aquela na rua Comendador Araújo), foi inaugurada para abrigar o Museu David Carneiro, que nesse momento teve o “Coronel” suprimido de seu nome.
A Casa David Carneiro: fim melancólico
Após a morte de David Carneiro em 1990, quase tudo veio abaixo. Segundo a historiadora Cassiana Lacerda, a família Carneiro contraiu pesadas dívidas com o Banco do Brasil, levando o banco a vender o terreno e os imóveis das ruas Comendador Araújo e Brigadeiro Franco. Um grupo de cinco empresas comprou as propriedades por RS$ 3,78 milhões de reais. Logo em seguida, tanto a casa de David Carneiro quanto o Museu e as demais construções históricas foram sumariamente demolidas. Por um golpe de sorte, restou somente a fachada da casa, cenário que contrasta com a modernidade do hotel que se ergueu sobre a Ramalhete curitibana.
Conforme afirmou Lacerda, a fachada só não veio abaixo por conta de um acordo entre a prefeitura de Curitiba (IPPUC) e os novos proprietários do terreno. A fim de obter a permissão para construir prédios elevados, os novos donos “foram obrigados a deixar uma parte daquela que foi a residência do historiador (pouco mais do que a fachada) para um espaço cultural, o Memorial David Carneiro”. A princípio, a Fundação Cultural de Curitiba, que passou a administrar o que restou do Ramalhete, prometeu no local uma “mostra permanente sobre David Carneiro”.
Pelo que apuramos,
a casa e o museu de David Carneiro não eram unidades de preservação, muito menos bens tombados. Isso contribuiu para que tudo fosse demolido a toque de caixa. Entretanto, vale destacar que a prefeitura agiu tardiamente, mas evitou o soterramento total.
O Memorial que não é Memorial e o que sobrou
Se tudo isso foi ruim, talvez tenha sido pior o tratamento dado ao Memorial David Carneiro, que na verdade não existe. Depois da construção do hotel sobre a fachada, por muitos anos o então futuro memorial foi somente um abrigo de móveis e objetos de uso pessoal do historiador. Em 2019, o espaço foi reaberto pela prefeitura, mas não para ter uma exposição sobre David Carneiro, e sim uma loja de souvenires.
Desse apagamento de histórias e patrimônios singulares de Curitiba, pelo menos restaram algumas coisas muito importantes. A coleção David Carneiro, que conta com mais de 6 mil peças, é um bem material tombado pelo IPHAN. Tudo isso foi à venda. Contudo, graças a negociações fundamentais entre a Superintendência do IPHAN no Paraná e o Governo do Estado, este decidiu pela compra de todo o acervo do historiador (investimento de cerca de 1 milhão de reais). Hoje, essa coleção está distribuída entre o Museu Paranaense, Museu Oscar Niemeyer, a Casa Lacerda e o Museu Histórico da Lapa.
Resta saber se um dia a Ramalhete curitibana irá receber de volta a parte da história que ela representa e se terá o reconhecimento devido por sua contribuição para a preservação histórica.
Texto e pesquisa de Gabriel Brum Perin e Gustavo Pitz
Fonte de pesquisa:
Grande parte das informações sobre David Carneiro e o Museu, além das citações de falas do historiador, se encontram na excelente dissertação da historiadora Daiane Viaz Machado, chamada "O Percurso Intelectual de uma Personalidade Curitibana: David Carneiro", UFPR, 2012.
https://www.prppg.ufpr.br/siga/visitante/trabalhoConclusaoWS?idpessoal=5948&idprograma=40001016009P0&anobase=2012&idtc=226
Outras informações sobre David Carneiro foram lidas em:
Cassiana Lacerda em
https://www.facebook.com/groups/417557358409468/permalink/1277248359107026/
Cassiana Lacerda em
https://www.facebook.com/groups/417557358409468/permalink/1277248359107026/
Sobre o Palácio de Sabugosa, ver:
https://lisboadeantigamente.blogspot.com/2019/04/palacio-sabugosa.html