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A fábrica da Matte Leão Jr: uma indústria ervateira que virou templo religioso

Muitos curitibanos sabem que o antigo complexo fabril da Matte Leão Junior S.A foi posto abaixo, e que sobre suas ruínas foi construído um gigantesco templo religioso da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD). Aos que não sabem, esse artigo pode ser uma boa porta de entrada nesse debate.

 

Ao ler um texto do Turistória sobre a Matte Leão demolida, o leitor que nos conhece imagina a grande tristeza, para não dizer revolta, que acompanha estas palavras aqui escritas. Jamais deixaremos de defender a preservação do patrimônio histórico do Paraná, não importam as circunstâncias.

 

Mas, antes de falarmos propriamente do que já não existe, vamos dar um passeio na história da empresa Matte Leão Jr.



Origens da Matte Leão Júnior

 

Em 1901, Agostinho Ermelino de Leão Júnior abriu a firma ervateira, a Leão Jr. S.A. Leão Júnior era filho de Agostinho de Ermelino de Leão, conhecido personagem curitibano. Leão Júnior inicialmente montou escritório na rua Riachuelo, mas seu engenho, a Fábrica Santo Agostinho, ficava na cidade de Ponta Grossa. Pouco tempo depois, em 1907, o empresário veio a falecer e o negócio foi comandado por sua esposa, Maria Clara Abreu de Leão.

 

Cabe registrar aqui uma grande história: nesse período em que Maria Clara tocou a firma de erva-mate, Maria Dolores Leão Fontana (irmã de Leão Jr.) administrou o engenho de seu marido, Francisco Fasce Fontana, e a Baronesa Maria José Correia, esposa do Barão do Serro Azul, também liderou a indústria do seu companheiro. Ambos os ervateiros haviam falecido, este último assassinado.

 

Depois de dois incêndios em Ponta Grossa, a Fábrica Leão Jr. foi transferida para o bairro Portão, em Curitiba, e após outro incêndio para o bairro Rebouças. Ali foi construído, em 1930, um grande complexo fabril em frente a Fábricas Fontana S.A., entre a Av. Getúlio Vargas e a Rua Piquiri. Fido Fontana, primo de Leão Júnior, administrava o engenho vizinho.

 

Nessa época, já estavam à frente da Fábrica Leão Jr. Altivir Ferreira Abreu, e o filho de Maria Clara, homônimo ao pai (pela quarta geração).



Crescimento da Matte Leão Júnior

 

A fábrica do Rebouças era gigantesca, a maior e mais moderna do Brasil. A erva-mate chegava sapecada e moída dos ervais e moinhos do interior, onde a família tinha largas extensões de terra. Depois de extraída, então, a erva era ensacada e transportada de balsa pelo rio Iguaçu até Porto Amazonas, cidade nas imediações de Palmeira. Daí o produto era levado de trem, em trilhos próprios da empresa, até a fábrica, onde posteriormente era beneficiada, colocada em barris para exportação ou mesmo em latas para venda. Para chegar ao Porto de Paranaguá, a erva-mate era deslocada em lombos de burros e carroças pela estrada da Graciosa (hoje, isso é feito de trem), sendo por fim alojada em navios cargueiros que seguiam para o Chile, Argentina e Uruguai. O que não era exportado era vendido nos armazéns do Paraná e em demais estados do sul.

 

Em toda essa cadeia de produção, milhares eram os operários e operárias que trabalhavam, desde a extração nos ervais até o empacotamento e chegada nos pontos de distribuição. Graças a eles, que por muitas vezes contestavam as condições de trabalho oferecidas (como na greve de 1917), na década de 20 a Leão Júnior S.A liderou a produção mundial de erva-mate, chegando a 5 mil toneladas por ano.

 

Para chegar a esses números, a empresa decidiu abrir um negócio inovador. O Uruguai, a Argentina e o Chile eram os maiores compradores da erva de chimarrão Leão. Entretanto, o maior país consumidor, a Argentina, decidiu proibir a importação de mate já embalado, para poder aumentar os ganhos das próprias indústrias nacionais. Então, a exemplo da Fábricas Fontana, a Leão Júnior abriu um engenho próprio argentino, passando a exportar a erva-mate para si mesma, mas a granel, e não pronta para o consumo.

 

Apesar disso, a importação de erva-mate pelos países do Cone Sul praticamente cessou (e assim permaneceu até os dias de hoje). Por isso, a Leão Júnior apostou em dois mercados: 1. a venda para o mercado interno, e 2. a produção de chá. Em 1938 surgiu o famoso chá Matte Leão, que nada mais era do que mate queimado (na época vendido em latas). No ano de 1973, as latas foram substituídas pelos sachês nos sabores natural e limão. Uma década depois, foi lançada a linha de chás de ervas de camomila, cidreira, erva-doce, boldo, hortelã, frutas, flores e, também, o chá preto. O sucesso foi tanto que logo o produto foi comercializado em copinhos.

 

O resultado disso foi a substituição completa da erva de chimarrão pela produção de chá, produto que deu início à marca Matte Leão. Desde então, a empresa domina 90% do mercado de chás do Brasil — estando à frente da sua vizinha Fontana, que, embora fosse a primeira a produzir chá e ainda sim mantivesse a erva de chimarrão, alcançou menores patamares de vendas.



A venda da Matte Leão Júnior e do seu prédio histórico

 

Depois de 106 anos comandada pela família Leão, a Matte Leão Júnior foi vendida para a Coca-Cola, em 2007. Passados dois anos, a fábrica já se encontrava no município de Fazenda Rio Grande, na região metropolitana de Curitiba. Desde 2012, chama-se Leão Alimentos e Bebidas.

 

De resto, poderíamos simplesmente escrever: o antigo e histórico complexo fabril do Rebouças foi vendido, demolido e assim se perdeu um pedaço da história do Paraná. Entretanto, esse processo foi um pouco mais complexo, e aqui tentaremos ser justos com todos os lados desse imbróglio.

 

As perguntas que você, leitor, deve estar fazendo são as seguintes: houve tentativas de preservação da fábrica da Matte Leão? Como conseguiram demoli-la? Se não houve tentativas, por quê?

 

Bom, o complexo fabril não era uma Unidade de Interesse de Preservação (UIP), e muito menos um patrimônio histórico tombado. Para torná-lo uma UIP, o poder municipal poderia ter agido, sim, mas a requisição para tal cabe a pessoas físicas ou jurídicas, isto é, à sociedade civil. Nesse caso, possivelmente foi a família Leão quem não requisitou. Então, ao vender o seu patrimônio, o município não teve como contestar o que seria feito do antigo prédio, já que não tinha a prerrogativa ou o direito de preservá-lo.

 


Mas o que disse o poder público sobre a demolição?

 

Tanto o Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano de Curitiba quanto a Fundação Cultural de Curitiba foram contra a demolição, realizada pouco depois que a família vendeu o terreno, em 2010. Ambos os órgãos reafirmaram a importância histórica da antiga fábrica dos Leão, que foi testemunha e, ao mesmo tempo, responsável pelo desenvolvimento do Paraná através da erva-mate. Segundo ambos, trata-se de um patrimônio histórico que mantém preservadas memórias e a identidade de Curitiba. Hoje, porém, tudo isso está soterrado, levando junto consigo importantes fontes do passado.

 

Essas declarações até têm fundamento, pois a zona industrial do bairro Rebouças, da qual a fábrica fazia parte, integrava um antigo projeto de revitalização da prefeitura. Desde que foi criada a Cidade Industrial de Curitiba na década de 70, boa parte dos complexos industriais do Rebouças foi desativada, como a Fábrica Fontana. Então, o município quis transformar esses espaços em áreas turísticas e culturais, como foi feito no Sesc Pompeia, em São Paulo. Por isso, a Fundação Cultural transferiu alguns de seus departamentos para um antigo moinho da Rua Piquiri, visando acelerar o processo de restauração do “Soho Rebouças” - nome do projeto de revitalização.

 

Havia até um grande projeto destinado a revitalizar o engenho da Matte Leão Jr., de autoria do escritório “Jaime Lerner Arquitetos Associados”, que previa a construção de prédios comerciais e residenciais que respeitassem a antiga estrutura da fábrica ainda conservada.

 

Contudo, já que não havia proteção legal do complexo, em maioria a família decidiu vender a fábrica a quem fez a melhor oferta. Neste caso, Edir Macedo, líder da Igreja Universal do Reino de Deus, saiu vencedor. O negócio girou em torno de 32 milhões de reais, 7 milhões a mais do que o valor venal do terreno - de acordo com o jornal Gazeta do Povo.

 

Depois disso, a prefeitura em si não fez resistência ou mesmo contestou a demolição do prédio. Na realidade, além do profundo silêncio das autoridades, atualmente não há contradição entre o projeto anti-histórico da IURD e a prefeitura (como já vimos aqui em texto sobre a Sociedade Protetora dos Operários).

 

Tanto é que, há dois anos, foi assim que a prefeitura de Curitiba se expressou quanto ao bairro Rebouças: “Este bairro central, que recebeu as primeiras indústrias da cidade, necessita se desenvolver social e economicamente, com investimentos que atraiam uma densidade maior tanto de moradores, quanto de usuários urbanos daquele espaço”. Ou seja, nenhum empreendimento de preservação histórica está previsto.


O que restará

 

A única coisa que sobrou da demolição foi um antigo prédio administrativo da Matte Leão Jr. em art déco, que fica na quadra ao lado da antiga fábrica, além de alguns galpões. São agora patrimônios da IURD, mas com uma diferença: essas edificações são Unidades de Interesse de Preservação. Por isso, o IPPUC fez um projeto de revitalização, já em execução.

 

Legado

 

Em plano mais evidente, o descaso com a preservação de memórias e patrimônios históricos prejudica a própria Matte Leão. Os motivos são óbvios. Enquanto a antiga fábrica estava de pé no centro da cidade, a marca ocupava um grande espaço no imaginário curitibano, algo que pode perder força com o tempo. Já em um pano de fundo, quem perde é Curitiba, pois uma herança importante de sua história é negada e esquecida. A sua identidade, e a consciência histórica de sua população, enxuga-se com mais essa ausência.

 

Para além disso tudo, soterramentos históricos como esse evidenciam a desimportância atribuída à cultura da erva-mate no Paraná, que é até hoje o maior estado produtor. A própria emancipação do Estado (em 1853), o surgimento de importantes instituições, como a sua maior universidade (UFPR), além da ferrovia e dos municípios portuários, são derivações do poder econômico trazido por esse produto ao Paraná.

 

De modo sutil, sabe-se que ocorre um processo desindustrialização em curso no Brasil, com um enfraquecimento de sindicatos, associações operárias e, consequentemente, de direitos trabalhistas. O intuito parece ser o de fragilizar a classe trabalhadora, tornando-a cada vez mais impotente para lutar pelas suas garantias, já não tão garantidas assim.

 

Nesse caso, a demolição de fábricas tradicionais, assim como de agremiações operárias (onde milhares de trabalhadores já deixaram parte de suas vidas) e sua completa desaparição do centro e de bairros movimentados da cidade, fica parecendo uma investida contra a memória operária e a preservação da história de suas lutas.

 

Tomara que não estejamos certos.


Texto e pesquisa de Gustavo Pitz

Fonte de pesquisa:  


https://www.gazetadopovo.com.br/haus/reacao-urbana/saiba-como-seria-o-projeto-de-revitalizacao-da-matte-leao/?fbclid=IwAR0J8kZLqazIF75jq0pJdXvSnzsrNErh1tK71E8a7LPqxObexpdMeLCaB5A


https://www.gazetadopovo.com.br/haus/arquitetura/unico-predio-restou-matte-leao-restaurado-curitiba/?fbclid=IwAR0jjSBIAugw1ZHfpTKMHp5KLKl5uk_97z1mGwS5NCO2imkpb_BRb3aic9o


https://www.gazetadopovo.com.br/vida-e-cidadania/sem-defesa-fabrica-da-matte-leao-comeca-a-ser-demolida-4bgldsza3ohv4cvcgx2vvms7i/?ref=link-interno-materia


https://arquivoarquitetura.com/044#6595-6599-galeria-044-5ff4a347d320e-p2


http://www.circulandoporcuritiba.com.br/2011/09/matte-leao-sua-historia-e-o-desmanche.html

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