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A Guerra da Carne em Curitiba


O ano de 1952 se iniciou em crise, pois alguns gêneros alimentícios da cesta básica dobraram de preço no Brasil. O leite e seus derivados chegaram a casa de 10 e 20 cruzeiros. A carne bovina e suína de segunda passaram a custar o preço dos cortes nobres. Esses, por sua vez, tornaram-se inviáveis, ao ponto da classe média curitibana renegá-los.


Esse fenômeno de alta de preços atingiu as regiões de maior demanda, ou seja, as maiores cidades do Brasil, com destaque para o Rio de Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte e Curitiba. Questionado pela sociedade, o governo Vargas explicou que a oferta de produtos da pecuária havia diminuído, em virtude de uma forte estiagem que destruiu os pastos nas zonas de produção.


Nos jornais, essa desculpa do governo não foi bem recebida. Getúlio Vargas, então, teve a sua popularidade, que já estava em baixa, dilacerada pelos críticos. Questionava-se, sobretudo, o porquê as exportações de carne se mantinham volumosas, enquanto se esvaziavam os armazéns e açougues nacionais.


Getúlio Vargas, em defesa, jogou a culpa sobre os vendedores de carne, que foram chamados pelo presidente de "tubarões da carne”. Segundo o estadista, apesar da diminuição da demanda, os preços somente estavam altos porque os comerciantes diminuíram propositalmente a oferta para aumentar o valor das carnes, numa espécie de especulação da fome. Contrariados, os sindicatos do comércio ressaltaram a queda no fornecimento do insumo, enquanto os produtores reforçaram o argumento da estiagem. Ou seja, ninguém assumia a responsabilidade.


Frente a isso, alguns grupos sociais, revoltados, passaram a boicotar os estabelecimentos que vendiam carne, e a fazer greves contra o governo e pela tabulação justa desse produto. As primeiras e maiores manifestações se iniciaram na cidade do Rio de Janeiro, mas em pouco tempo Curitiba foi tomada por essa efervescência.


A crise da carne curitibana, em números


Apesar dos discursos que justificavam os preços abusivos, os fatos nos mostram o seguinte. Segundo Fernando Schinimann, o gado bovino estava em franca produção no Brasil, ou seja, não havia estiagem. De acordo com o historiador, enquanto Vargas exportava 113 toneladas de carne para a Itália, ele importava 40 toneladas da Argentina, porém de má qualidade.


Somado a isso, tem-se o caso do Paraná. No estado, inexistia uma organização dos frigoríficos. Em Curitiba, por exemplo, o matadouro municipal do Guabirotuba estava em péssimas condições de funcionamento, aspecto que contribuiu para o desperdício do produto. Além disso, na região se pagava mais aos invernistas e criadores (cerca de 10 cruzeiros o quilo), preço que encarecia a carne vendida nos açougues (vendida a 17 cruzeiros, em média).


A culpa então era dos produtores? Nem sempre. Em virtude do baixo lucro, muitos açougueiros inflacionavam o preço da carne, diminuindo a sua oferta. Outros, passaram a recusar compras pequenas, em que a quantidade pedida pelo consumidor era menor do que meio quilo. Há relatos, inclusive, de que alguns comércios vendiam carne de segunda ou terceira pelo preço das carnes nobres, ou que repassam produtos com excedente de ossos ou mesmo podre.


Frente a isso e as notícias de boicote de consumo de carne em outras capitais, a população curitibana começou a diminuir o consumo de carne espontaneamente. E não era por menos: viver na capital estava caro, mas o salário mínimo se mantinha em 1.200 cruzeiros.


A Guerra da Carne, em fatos


A partir do dia nove de fevereiro, a “greve branca” (nome que se dava aos boicotes ou paralisações) começou a ser promovida por telefonemas anônimos às donas de casa. Dizia-se: "Não compre carne". De boca em boca, as mulheres, principalmente das classes baixa e média, organizaram um movimento de boicote aos açougues que chegou aos jornais. Estes, então, passaram a incentivar e a promover a greve.


A participação central delas não foi por acaso. Eram elas, naquele contexto, as responsáveis pela economia doméstica. A diferença naquela década de 50 foi que, após o relativo aumento da participação feminina na esfera pública vivenciada na guerra e no pós-guerra, o espaço às reivindicações das mulheres era maior. Por isso elas se manifestaram e se organizaram em fevereiro de 1952.

No dia doze de fevereiro, no jornal Diário da Tarde, foi divulgado o primeiro dia oficial da greve em Curitiba, juntamente com seu primeiro comunicado:


 1 - O início da greve será no próximo dia 12 (terça-feira). Ninguém comprará carne a começar deste dia.

 2 - A greve terá a duração necessária, ou seja, até que o custo da carne sofra redução honesta.

 3 - Só deve comprar carne em casos de extrema necessidade: em caso de doenças e para a alimentação de crianças.

 4 - Depois de iniciada ou terminada a greve, nao se deve comprar carne, porque tendo ficado em frigorífico muitos dias, não servirá para a alimentação. Após a vitória de nossa greve, devemos aguardar comunicado da saúde pública, avisando a população que a carne à venda se encontra em condições para consumo.

5 - Novo comunicado expediremos no dia 13, neste mesmo jornal. 

A Comissão da "Greve Branca"


A atuação da Comissão da greve, que já neste momento contava com mulheres, operários e estudantes, foi decisiva, pois o consumo chegou a reduzir-se em 70%. Durante o dia, em bairros como o Cajuru, o Santa Quitéria e o Prado Velho, muitas mulheres fiscalizavam os açougues para impedir que a carne fosse comprada, e incentivavam o consumo de outros alimentos. Por meio das reuniões de bairro, das conversas com as vizinhas e da ocupação das ruas, o movimento ganhou corpo.


Schinimann conta um episódio desse boicote:



“No Bairro Carmela Dutra, cinqüenta mulheres davam o exemplo de como boicotar, fazendo a fiscalização de todos os açougues das redondezas. Impediam a entrada dos produtos nos estabelecimentos, bem como a sua venda. O exemplo era seguido: "Ontem uma senhora no Bairro do Bacacheri, quis penetrar num açougue, a fim de adquirir carne, sendo porém, obstada por resolutas donas de casa, que deram na "furona" tremenda lição. (....) Num açougue da Praça Tiradentes se repetiu.”



A partir do dia quatorze de fevereiro, o número de reuniões da comissão aumentou. Delas participaram os representantes da UNE (União Nacional dos Estudantes), da UPE (União Paranaense dos Estudantes), da UPES (União Paranaense dos Estudantes Secundaristas), o Sindicato da Construção Civil, representantes de várias associações, além de, provavelmente, a Federação das Mulheres do Paraná e os Diretórios Acadêmicos de Direito e Medicina (pois as reuniões eram na Sede do DANC, Diretório Acadêmico de Medicina Nilo Cairo).


A guerra


Até aquele momento, a greve permanecia sendo um boicote. Mas isso mudou no dia dezoito de fevereiro. Nessa data, algumas mulheres que fiscalizavam o boicote aos açougues do Santa Quitéria foram atacadas por um policial civil. Ao mesmo tempo, mas do outro lado da cidade, um funcionário público foi vaiado ao comprar carne.


Com essa intensificação dos ânimos, a UPE, a UPES, a Federação de Mulheres do Paraná e a União Sindical dos Trabalhadores do Paraná decidiram criar o Comício Contra a Carestia. Este seria um evento de protesto na Boca Maldita, no dia vinte de fevereiro, às 20 horas, que teria como mote a diminuição do preço da carne por meio da intervenção do governo.


A situação já era insustentável. Há quase 7 dias sem comer carne vermelha, a população estava inconformada, pois os açougues mantinham os preços abusivos e se recusaram a vender poucas quantias.


Em decorrência disso, na manhã do dia dezenove, no Cajuru e no Prado Velho alguns açougues foram invadidos e as carnes atiradas ao chão. Logo depois, o açougue da Avenida Sete de Setembro com a João Negrão foi atingido e teve as carnes expostas e queimadas. Em outros estabelecimentos da região central, o mesmo ocorreu. Nos bairros, o tumulto aos poucos cresceu e terminou com a invasão de alguns comércios.

 

A polícia foi chamada. As mulheres revidavam arremessando pedaços de carne, os açougueiros utilizavam facas e cacetes, e outros manifestantes manejavam coquetéis molotov. Era o caos em Curitiba, que durou o dia inteiro. Na Praça Tiradentes, na esquina da Rua Monsenhor Celso, a polícia trocou socos com a população.


Abaixo, manchetes do Jornal Diário da Tarde, dos dias 19 e 20 de fevereiro, respectivamente. Depois, fotografia de uma manifestante publicada pelo periódico.

A batalha final


A Comissão Central de Organização da Greve foi considerada culpada pela revolta, embora não se tivessem provas de que os responsáveis pelo vandalismo fossem vinculados ao movimento grevista. Com isso, o Comício do dia vinte foi cancelado. Segundo Schinimann, porém, a polícia censurou a greve porque alguns órgãos, como a Federação das Mulheres do Paraná, não estavam regulados na Delegacia Regional do Trabalho


O conflito era certo. A Praça Osório estava tomada por militares, e os demais bairros contavam com a presença maciça de policiais. Milhares de pessoas, contudo, chegaram na região do Comício cancelado a partir das 20 horas. Tropas policiais foram chamadas e o corpo de bombeiros agiu, jogando água sobre a aglomeração. Aqueles que protestavam e vaivam eram detidos ali mesmo, no Bras Hotel.


Houve até casos de tortura, como a que sofreu o estudante de direito Palino Andreolli. Segundo seus colegas, ele foi agredido pelo guarda de trânsito Francisco Pignatari, e depois pelos outros policiais. O corpo dele ficou estendido no chão. Já outros estudantes fugiam e gritavam palavras de ordem. Muitas mulheres, homens e crianças foram atendidos nos hospitais com ferimentos graves. Os conflitos adentram a madrugada, até serem finalmente silenciados na manhã seguinte.




Decorrências


Em menos de uma semana, as autoridades tomaram providências (sobretudo porque a repressão quase atingiu a casa do governador, Bento Munhoz da Rocha, que morava pertinho da Osório). A carne do tipo popular voltou a ser vendida, e as carnes de primeira retornaram ao preço de 14 cruzeiros.


Quanto aos manifestantes, não se sabe da existência de vítimas fatais, nem de pessoas que ficaram presas por algum tempo. De fato, os ânimos se arrefeceram.


Lideranças


Apesar das circunstâncias trágicas, a chamada “Guerra da Carne” e todo o movimento do qual ela fez parte deve ser reconhecida pela imponência das ações das mulheres.


Como exemplo dessas ações, citamos o caso de Nair Bismaierf, uma das líderes do movimento grevista. Ela residia na região do Cajuru, em Curitiba, e, apesar de ser amiga pessoal de Ney Braga, sempre foi ativa nas questões voltadas ao consumidor. Depois, porém, ela se mudou para o Estado da Guanabara, em virtude da transferência de seu marido para a região.


Além dela, poderíamos citar mais casos de lideranças nos bairros, principalmente no Cajuru, Santa Quitéria e Prado Velho. Como essas regiões eram distantes da repressão, muitas agiram contra os açougues locais. Vale ressaltar, também, que grande parte da população desses bairros era de funcionários da Rede Ferroviária Federal e simpatizantes do Partido Trabalhista Brasileiro, o PTB.


O depois


É importante destacar que, apesar da queda dos preços, dois anos após o ocorrido as carnes já estavam hiper faturadas. A população, porém, já não se manifestou de igual forma.


Em Curitiba, resistiu a memória de tempos em que homens e mulheres se manifestaram pelos seus direitos, numa cidade que vivenciava disputas de classe e tensões com o governo. Sim, em Curitiba há passado de luta.



Referências


Fernando Schinimann. A batalha da Carne em Curitiba: 1945-1964. Dissertação de mestrado em História, UFPR, 1992.

Ricardo Mocellin. Historia Concisa de Curitiba. Curitiba: Editora Remo, 2020.


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