O paiol de pólvora que virou teatro
Recentemente um dos primeiros espaços culturais de Curitiba e um dos mais famosos completou 50 anos: o Teatro Paiol.
Quando construído em 1874 para abrigar pólvoras, não se imaginava que quase cem anos depois o paiol iria servir para uma finalidade totalmente diferente: a de teatro.
Em 1874, o Governo Provincial do Paraná entregou, no dia 5 de janeiro de 1874, com assistência do Presidente da Província Frederico José Cardoso de Araújo Abranches, do Engenheiro Francisco Antonio Monteiro Tourinho e de outras autoridades, um paiol de pólvora. À época, estava localizado “no vaile do Ribeirao do Agua Verde, a dous kilometros da cidade”. Junto com o paiol, foi entregue também outro edifício que serviria como depósito de artigos bélicos.
Nas notícias da época não fica claro se o edifício estava localizado no mesmo terreno do paiol ou em outra localidade, mas assim ele foi descrito na edição de 10 de janeiro de 1874, do Jornal Dezenove de Dezembro:
“O deposito de artigos bélicos tem 20 metros de frente, 36 de fundo e 5,5 de altura na fachada desde o réz até a linha culminante do acrotério. A fachada apresenta 6 janellas e uma porta central, terminadas em arcos que exteriormente simulam ser formados de aduelas de cantaria. (...)”
Já o paiol era descrito da seguinte forma, na mesma edição do jornal:
“O paiol de polvora (...) consiste em uma magnifica abobada circular de 12 metros de diametro. Cingindo toda a cornija, eleva-se uma attica, tambem disposta em ameias, que occulta completamente a cupula, e imprime ao edificio um aspecto caracteristicamente militar”
Esta construção inicial estava localizada onde hoje é o Bairro Água Verde. Com a expansão da cidade e com mais moradores se instalando na região, outro local foi escolhido para que o Paiol fosse transferido. Assim, por volta de 1906 foi construído o novo paiol, na mesma localidade em que hoje está o teatro.
O paiol continuou com sua função original até 1917. A partir daí passou a abrigar o depósito de material inservível da prefeitura e os arquivos municipais. Em 1925, com a criação de um departamento encarregado de preparar a pavimentação das ruas, ali foi instalada a Usina do Asfalto.
A construção ficou por muito tempo abandonada, servindo a diversas finalidades como as acima citadas. Até que, na década de 1970, o edifício foi reformado para servir como teatro. O responsável pela restauração foi o arquiteto Abraão Assad. O contexto era o de uma Curitiba que começava a se apresentar como uma promessa de grande cidade pro futuro. A capital paranaense ia cada vez mais deixando de ser rural e se tornando urbana.
Um dos principais artífices desse movimento foi o Prefeito Jaime Lerner, que teve três mandatos como mandatário municipal (1971-1975, 1979-1983 e 1989-1992). São desse período, inclusive (década de 1970), importantes construções de Curitiba, como o Palácio do Governo, a Prefeitura, e toda a estrutura do Centro Cívico de modo geral.
No plano artístico, o ponto de partida desse projeto de modernização foi o Teatro Paiol. Assim, no fim de 1971, o antigo paiol que servia de depósito de pólvora foi transformado em teatro. A inauguração do teatro, inclusive, se confunde com o início da Fundação Cultura de Curitiba, conforme consta no próprio site da FCC:
"A criação da Fundação Cultural de Curitiba se mistura à origem do Teatro do Paiol, inaugurado por Vinicius de Moraes, que veio à cidade pela primeira vez para a abertura do espaço, sem contrato escrito, acompanhado de Toquinho, Marília Medalha e o Trio Mocotó." (...) O sucesso do evento marcou o início da Fundação Cultural de Curitiba, que só veio a nascer oficialmente no dia 5 de janeiro de 1973. A partir daí, graças a uma série de ações de planejamento, nasceu também uma política de preservação da cultura e da história da cidade, o que contribuiu para desencadear o processo de renovação cultural e configurar a necessidade de uma instituição para cuidar especialmente da política cultural do município.
O próprio logotipo da Fundação é composto por uma imagem do Teatro Paiol:
Não apenas o edifício do teatro foi reformado, mas também a infraestrutura ao seu redor, de modo a facilitar o acesso ao novo ponto cultural da cidade.
Na inauguração do Teatro, estiveram presentes Vinícius de Moraes, Toquinho, Maria Medalha e o Trio Mocotó. Realizaram quatro shows, entre os dias 27 e 30 de dezembro de 1971.
Nas palavras de Vinicius, a nova casa de espetáculos é “maravilhosa e não deveria apenas ser chamada de Teatro do Paiol, mas sim ‘Paiol de Pólvora’, pois é um nome muito mais quente”. Inclusive, em homenagem ao teatro, Vinicius compôs uma música - de título “paiol de pólvora” - que foi apresentada no teatro em 30 de dezembro de 1971. A ditadura militar achou a letra ofensiva e censurou a música, que teve sua gravação e apresentação pública proibidas. O único registro fonográfico da canção está no LP com a trilha sonora da novela O Bem Amado, de Dias Gomes. Abaixo, a letra da música:
Paiol de pólvora
Vinicius de Moraes e Toquinho Pólvora
Estamos trancados no paiol de pólvora
Paralisados no paiol de pólvora
Olhos vedados no paiol de pólvora
Dentes cerrados no paiol de pólvora
Só tem entrada no paiol de pólvora
Ninguém diz nada no paiol de pólvora
Ninguém se encara no paiol de pólvora
Só se enche a cara no paiol de pólvora
Mulher e homem no paiol de pólvora
Ninguém tem nome no paiol de pólvora
O azar é sorte no paiol de pólvora
A vida é morte no paiol de pólvora
São tudo flores no paiol de pólvora
TV a cores no paiol de pólvora
Tomem lugares no paiol de pólvora
Vai pelos ares o paiol de pólvora
A censura se deu pelo fato de que, na letra, o “paiol de pólvora” pode ser interpretado como uma metáfora para o Brasil da época. Além disso, Vinicius foi perseguido pela ditadura e sempre se opôs ao regime.
No ato inaugural do teatro, Vinicius de Moraes disse:
“Eu fui convidado a batizar esse teatro, e eu gostaria de batizar ele com uísque, se o prefeito me permite… Porque eu acho que é uma bebida sadia, não faz mal a ninguém, pra mim é remédio. (...) Está batizado o paiol da pólvora, essa casa tão linda que o prefeito Jaime Lerner fez, e que, eu acabei de dizer isso a meus amigos meus companheiros de trabalho, não há no Brasil inteiro uma casa de espetáculo desse tamanho tão bonitinha.” Vídeo com o aúdio:
https://fb.watch/ciyK1PZtw-/
Em razão desse “batismo”, há no teatro um busto em homenagem ao músico e poeta carioca, que foi instalada em razão da comemoração dos 50 anos do teatro, em Dezembro de 2021.
Assim estava inaugurado o Teatro Paiol, que desde então recebeu diversos shows de artistas muito renomados, tanto a nível regional como nacional. Entre eles, Hermeto Paschoal, Elza Soares, Zizi Possi, Gonzaguinha, Zezé Motta, Djavan, Nana Caymmi, Clara Nunes, Paulinho da Viola, Edu Lobo, Gal Costa, Raul Seixas, entre outros.
Um dos programas culturais do Paiol foi a série chamada Parcerias Impossíveis. Começada nos anos iniciais do teatro, reunia duas pessoas de diferentes atividades para uma conversa com o público. As presenças eram variadas, indo desde músicos e artistas até políticos. Teve duração de quatro anos, sempre às segundas-feiras, e lotava o espaço do teatro.
Por sua capacidade de público reduzida em relação a outros teatros da cidade - 217 lugares - os shows e peças artísticas no Paiol possuem um caráter mais reservado e intimista.
Texto e pesquisa: Gabriel Brum Perin
Fontes de pesquisa:
https://curitibaparanaocuritibanos.blogspot.com/2011/04/teatro-paiol.html
https://clube.gazetadopovo.com.br/noticias/outros/teatro-paiol-e-simbolo-cultural-de-curitiba/
https://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=416398&Pesq=paiol&pagfis=7483
https://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=761672&pagfis=84962
https://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=761672&pagfis=84962
http://www.fundacaoculturaldecuritiba.com.br/historia/40-anos/
https://pergamum.curitiba.pr.gov.br/vinculos/monogr/Texto/boletim_romario_137.pdf