Os Avá-Guarani de Ocoí-Jacutinga e a Itaipu Binacional
Introdução
A construção da Usina Hidrelétrica Itaipu Binacional na década de 1970 foi um processo que envolveu diversas disputas, tanto de caráter geopolítico, entre Argentina, Paraguai e Brasil, como conflitos de interesses entre as populações locais e os Estados. Estes conflitos incluem a questão indígena, seu direito à terra e como o governo brasileiro e a Itaipu atuaram em relação aos indígenas.
Início dos conflitos
No período de 1940 a 1960, ocorreu um acirramento do contato entre indígenas e não-indígenas, com o avanço da colonização no oeste paranaense. Os problemas derivados desse contato levaram a Funai a organizar, em 1977, o Subgrupo de Trabalho XV, que deveria “examinar a situação do grupo indígena Guarani ali localizado em Santa Terezinha ou Três Lagoas no Estado do Paraná”. A investigação percorreu áreas do município de Foz do Iguaçu, concluindo não existir qualquer elemento indígena dentre os ocupantes. No município de São Miguel do Iguaçu, porém, constatou-se a existência de 11 famílias guaranis, da etnia Avá-Guarani. A área habitada por estas famílias seria inundada com a construção da usina de Itaipu. Por isso, o próprio Subgrupo de Trabalho apresentou soluções para o reassentamento dos guaranis às margens do lago que seria criado.
A partir dessas conclusões, inicia-se uma disputa quanto à indianidade da população que habitava a área que seria inundada pela construção da Itaipu. A comprovação da indianidade garantiria aos indígenas o direito de propriedade da terra, enquanto sua desqualificação em não serem “verdadeiros índios” facilitaria a expulsão desta população e a construção da usina. Desse modo, era interessante ao Estado que se negasse a existência de indígenas na área. Em 1981, a Itaipu solicitou à Funai um laudo de identificação étnica das 11 famílias listadas pelo Subgrupo. Após uma viagem de pesquisa ao local, uma assistente social e o chefe do Posto Indígena Rio das Cobras, atendendo aos anseios do Estado, emitiram um parecer negando a indianidade dessas famílias.
Após uma série de negociações, em 12 de Maio de 1982, na área indígena de Jacutinga, foi firmado um acordo que garantia o reassentamento dessas famílias para uma área de 251,15 hectares, de domínio da Itaipu e do Incra, localizada em São Miguel do Iguaçu, às margens do reservatório da usina.
A justificativa do Estado
No acervo digital da Universidade Federal do Paraná (UFPR), existem inúmeros documentos que apresentam diferentes narrativas acerca de todo esse processo, entre eles um memorial produzido em 1983, de autoria de Alceu Luiz Zanellato e José Maria Valente.
Nota-se no memorial o emprego de adjetivos que buscam enfatizar o reduzido tamanho da comunidade indígena e da área originalmente ocupada pela população Avá-Guarani: “minúscula comunidade” ,“pequena área (30,00 ha)”. Consta que o convênio firmado entre Funai e Itaipu compreendia a doação de terras do Incra e a venda de terras de Itaipu aos indígenas, totalizando os 251,1526 ha firmados. O tom do memorial é de que o acordo foi feito com a aprovação dos indígenas, como uma troca justa.
Ao final do memorial, a defesa afirma que os indígenas foram beneficiados com a permuta, em extensão de terra, ampliada de 30 para 251 hectares, e em valor patrimonial. Também apresentam o seguinte argumento:
“...os atuais ocupantes da Reserva Avá-Guarani não são os índios que legitimamente a adquiriram. Não, são outros índios, os quais na sua maioria vieram do Paraguai e atualmente constituem uma comunidade bem maior do que a dos seus primitivos donos. De forma que os atuais ocupantes são posseiros, invasores e o que é pior, expulsaram da área os seus legítimos proprietários, os quais estão espalhados pelo Brasil”.
Com este argumento, procuravam contrariar a acusação de que as terras eram insuficientes para os indígenas. Também questionam seu direito, classificando-os como paraguaios e ignorando as dinâmicas e a identidade própria do povo Avá-Guarani.
A visão dos Avá-Guarani
No acervo digital da UFPR também encontram-se documentos que podem ser utilizados para contestar esta narrativa oficial da Itaipu. Além dos pareceres antropológicos, há algumas cartas dos próprios indígenas. Estas cartas provavelmente foram escritas por brancos, possivelmente missionários ligados à Pastoral da Terra ou ao CIMI (Conselho Indigenista Missionário), pois apresentam impressões digitais dos indígenas, indicando serem estes analfabetos. Estas cartas também evidenciam a atuação dos indígenas na luta por direitos, questionando a visão de que seriam relativamente incapazes, pois apresentam informações discordantes daquelas que aparecem em documentos da Itaipu e jornais da época.
A carta dos guaranis endereçada ao presidente da Funai aparece no acervo em três versões. O texto das três é igual, porém em uma a data é de 5 de Fevereiro de 1982, enquanto as outras duas são datadas em 22 de Março de 1982.
Nessa carta, consta a recusa de uma proposta na qual os indígenas receberiam uma área de 121 ha. Os indígenas afirmam que suas terras originalmente compreendiam 1500 ha, uma extensão muito maior do que a apresentada no memorial que foi citado. Portanto, argumentam que não aceitariam um acordo em que a terra fosse menor ou pior do que a que possuíam, pois não seria possível manter o seu modo de vida, construindo um cemitério e roças no sistema guarani. No entanto, foram obrigados a deixar a terra, pois a inundação já ocorria, o que questiona a visão de que o acordo havia sido feito de forma amigável.
Ainda segundo a carta, a Funai não estaria cumprindo sua função de defesa aos índios desde 1975, quando funcionários do Incra e policiais atearam fogo em casas guaranis, com participação do então prefeito de Medianeira. Os indígenas ainda reconhecem sua identidade própria se contrapondo aos “brasileiros”, que roubaram suas terras.
Há também uma carta manuscrita datada de 6 de Maio de 1982 que tem o mesmo tom de recusa à proposta de Itaipu, porém traz uma nova informação: um jornal local teria publicado a aceitação dos indígenas à proposta da Itaipu, porque eles não teriam dado nenhuma resposta.
A carta que traça o panorama mais amplo é a datada de 18 de Setembro de 1986, endereçada a presidente do Banco Mundial. Nesta é dito que o problema em relação às terras permanece e que as comunicações com a Itaipu e a Funai não têm obtido nenhum resultado. A justificativa da carta é a de que o Banco Mundial teria emprestado dinheiro à Itaipu para que esta cometesse crimes contra os indígenas e “a Funai para que pudesse pagar pessoas para atirar nos índios”, possuindo responsabilidade em relação a isso. Também o Incra é acusado de queimar casas guaranis, provavelmente em referência ao episódio de 1975.[1]
Relata-se que, originalmente, a comunidade guarani era composta de 100 famílias, com mais de 500 pessoas. No entanto, com os ataques do Incra, muitos fugiram para o Paraguai, outros foram mortos e 30 famílias se esconderam na mata e posteriormente foram, segundo orientação da Funai, para o Rio das Cobras, onde haviam outros indígenas. Sem muito êxito, 12 famílias retornaram e, contactando outros parentes que estavam espalhados, totalizaram 22 famílias em 1979.
A carta também afirma que a Itaipu tinha feito quatro propostas aos indígenas, para sua realocação: na primeira dariam a eles 10 alqueires de terra, depois 60 alqueires, 80 alqueires e finalmente 100 alqueires. Ainda afirmam que no mapa, conhecido apenas posteriormente, a última proposta correspondia apenas a 231 ha. Todas as propostas teriam sido recusadas, pois eram muito menores que os 1500 ha que possuíam, mas como a Itaipu ameaçava e assustava, chegando a colocar um prazo de 3 dias para saírem, e as terras começaram a ser inundadas, os indígenas foram obrigados a sair. No momento da escrita da carta, em 1986, estariam vivendo nas terras guarani 35 famílias, num total de 157 pessoas. Afirmam que os 251 ha teriam sido reduzidos para 210 ha, pois, devido a proximidade com a Usina, a inundação e erosão da terra continuavam se expandindo.
Os indígenas também defendem seu direito como povos originários afirmando que:
Nós tínhamos 1500 ha de terra, com matas, caça e peixes, ao invés de 210 ha com veneno e malária. [2]
Imagens comprovadoras:
As fotos abaixo são de julho de 1981. Elas foram cedidas à Comissão da Verdade do Paraná por um ex-funcionário da Itaipu que se manteve no anonimato, e depois foram publicadas pelo jornal The Intercept Brasil, em 2018. Nelas aparecem servidores da hidrelétrica do "setor de desapropriação" queimando aldeias indígenas. As tarjas vermelhas foram postas pela CNV.
Desfecho:
Em 2017, os Avá-Guarani retomaram algumas de suas terras. Até hoje, porém, eles lutam pelo direto à terra e cobram providências do Estado e da Itaipu Binacional.
Texto e pesquisa: Casso Skora
Notas do texto:
[1] COMUNIDADE OCOÍ-JACUTINGA. [Carta] 18 Set. 1986, Barra do Ocoí, Jacutinga. Foz do Iguaçu, PR.[para] CONABLE, Barber, Washington, D. C. 4f. Dos guaranis ao presidente do Banco Mundial. Disponível em: <https://acervodigital.ufpr.br/handle/1884/65711 >. Acesso em 8 de Setembro de 2020.
[2] COMUNIDADE OCOÍ-JACUTINGA. [Carta] 18 Set. 1986, Barra do Ocoí, Jacutinga. Foz do Iguaçu, PR.[para] CONABLE, Barber, Washington, D. C. 4f. Dos guaranis ao presidente do Banco Mundial. Disponível em: <https://acervodigital.ufpr.br/handle/1884/65711 >. Acesso em 8 de Setembro de 2020. p. 4.
Fontes
ALMEIDA, Rubem F. Thomas; MORAES, João M. Bodê. Laudo antropológico. 1995. Disponível em: <https://acervodigital.ufpr.br/handle/1884/65835>. Acesso em 8 de Setembro de 2020.
CARVALHO, Edgard Assis de. Avá-Guarani do Ocoí-Jacutinga. Laudo antropológico. CIMI, ANAI, 1981. Disponível em: <https://acervodigital.ufpr.br/handle/1884/65703>. Acesso em 8 de Setembro de 2020
COMUNIDADE OCOÍ-JACUTINGA. [Carta] 5 Fev. 1982, Barra do Ocoí, Jacutinga. Foz do Iguaçu, PR. [para] LEAL, Paulo Moreira. 2f. Dos guaranis ao presidente da Funai. Disponível em: <https://acervodigital.ufpr.br/handle/1884/65708>. Acesso em 8 de Setembro de 2020.
__________________________, [Carta] 3 Mar. 1982, Barra do Ocoí, Jacutinga. Foz do Iguaçu, PR. [para] LEAL, Paulo Moreira. 2f. Dos guaranis ao presidente da Funai. Disponível em: <https://acervodigital.ufpr.br/handle/1884/65710>. Acesso em 8 de Setembro de 2020.
__________________________, [Carta] 3 Mar. 1982, Barra do Ocoí, Jacutinga. Foz do Iguaçu, PR. [para] LEAL, Paulo Moreira. 2f. Dos guaranis ao presidente da Funai. Disponível em: <https://acervodigital.ufpr.br/handle/1884/61282 >. Acesso em 8 de Setembro de 2020.
__________________________, [Carta] 5 Mai. 1982, Barra do Ocoí, Jacutinga. Foz do Iguaçu, PR. 2f. Da recusa à proposta da Itaipu, manuscrita. Disponível em: <https://acervodigital.ufpr.br/handle/1884/65711 >. Acesso em 8 de Setembro de 2020.
__________________________, [Carta] 18 Set. 1986, Barra do Ocoí, Jacutinga. Foz do Iguaçu, PR.[para] CONABLE, Barber, Washington, D. C. 4f. Dos guaranis ao presidente do Banco Mundial. Disponível em: <https://acervodigital.ufpr.br/handle/1884/65783 >. Acesso em 8 de Setembro de 2020.
ZANELLATO, Alceu Luiz; VALENTE, José Maria. Memorial. Sobre o convênio entre Itaipu e Funai.1983. Disponível em <https://acervodigital.ufpr.br/handle/1884/61361> Acesso em 8 de Setembro de 2020.
Referências Bibliográficas
https://theintercept.com/2018/06/12/fotos-funcionarios-itaipu-incendio-indigenas/
BRASIL. Lei n o 5.869, de 11 de Janeiro de 1973. Institui o Código de Processo Civil. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, 11 jan. 1973. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l5869impressao.htm>. Acesso em 8 de Setembro de 2020.
CONRADI, Carla Cristina Nacke. As ações do Estado nacional e a trajetória política dos Guarani Ñandeva no Oeste do Paraná (1977-1997). 2007. 146 f. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal da Grande Dourados, Dourados.
SERVIÇO DE ESTATÍSTICA DA PRODUÇÃO. Unidades Agrárias não Decimais em Uso no Brasil. Rio de Janeiro: IBGE. 1948. p. 44. Disponível em: <https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv82398.pdf>. Acesso em 8 de Setembro de 2020.