Há sempre uma metáfora no caminho da poeta Marise Manoel
Conversa com Turistória em abril de 2021.
Texto revisto pela poeta em maio de 2023.
Livro da família: o dicionário
Meu apego às Letras nasceu cedo. Desde menina, fui atraída pelo universo das palavras, das imagens, das histórias, das ficções, dos poemas. Em casa, tive um pai prestimoso, atento ao modo de expressão dos filhos. Meu pai João gostava da política. Trabalhista, apaixonado pelas polêmicas públicas em torno dos grandes temas da nação, ele gostava de fazer seus discursos contundentes contra a exploração dos trabalhadores. Teve no dicionário seu mais confiável conselheiro. Guardo comigo a preciosidade: uma edição de 1957 do Dicionário de Sinônimos e Antônimos da Língua Portuguesa por Francisco Fernandes, da Editora Globo de Porto Alegre (imagem 1). Meu queridinho!
Minha mãe Neusa, sempre teatral! Estudou no colégio interno com a nossa querida atriz Odelair Rodrigues – não saberia dizer quem influenciou quem! Ela não apenas sabe contar bem uma história, mas também a representa, faz teatro. Imprime, ao contar, um tempo fora do conto, que é o da encenação. Meu irmão Paulo foi apresentador e locutor em rádio e televisão por muitos anos. Tem essa inclinação especial para saborear as palavras, os sons. E meu irmão César tinha uma cabeça doida. Lembro que desenhava estradas e meninos em nanquim, quando jovem. Eu tinha grande curiosidade por aquela habilidade dele, irmão mais velho. Seus desenhos eram coisa mágica para uma criança como eu, aquilo de ver acontecer o desenho, a imagem, experimentar o que não estava ali antes, sabe como é? Manoel de Barros, em seu Menino do Mato, se não me engano, nos ensina que “escrever o que não acontece é tarefa da poesia”. Parece ocorrer desse modo com todas as artes.
Fiz esse recorte do núcleo familiar apenas para dizer que é possível reconstruir uma memória afetivo-estética a partir de traços daquilo que experenciamos e do que fica em nós desses laços primevos, sempre embaraçados e, muitas vezes, embaraçosos. Falo daquilo que podemos sentir como um princípio artístico, como fome de vida, de agitação transformadora, de algo que nos impulsiona a querer mundos possíveis, ideais, utópicos. Acontece assim na vida de muitas pessoas.
Escola: lugar de explosões criativas
Aqui abro uma menção à importância da escola de educação básica, que é fundamental para o despertar cultural e artístico das crianças. Sobretudo a escola pública, que abriga grande número de crianças e adolescentes, para os quais a única porta aberta para o mundo da literatura e das artes é justamente a da escola. A escola é um espaço privilegiado de explosões criativas, de leituras criativas. É o lugar de aprender a sentir e a perceber o objeto estético, de ampliar nossa estesia, nossa capacidade de perceber o mundo que nos cerca. Estesia é o contrário de anestesia, de embotamento dos sentidos.
A experiência de ler o mundo em que pisa e saber construir liames com mundos possíveis muda o cotidiano do jovem; o faz questionar a fixidez dos costumes, a não aceitar as leis como imutáveis e o leva a uma inquietação permanente.
Nos diferentes espaços de prazeres e aflições, que são também família e escola, encontramos as nascentes socioculturais que nos levam para diferentes lugares, a ter gostos variados, e mesmo incompreensíveis, subterrâneos, a buscar encontros, a encarar o inusitado deles. E ficamos a querê-los por toda a vida. Mas, como diz o poeta Ferreira Gullar, “a poesia quando chega/não respeita nada./Nem pai nem mãe.” (poema Subversiva, do livro Na Vertigem do Dia).
Voltar aos 17: formação e mundo do trabalho
Agora, ter 17 anos de idade na década de 1970, no Brasil, não foi nada fácil! Sob a ditadura militar, sentíamos o suor da pele como areia, como sangue, como bílis. Mas tínhamos utopia! Este sonho, este querer um mundo diferente, melhor, inclusivo, fraterno, isso leva a gente longe. Esse sentimento de amorosidade profunda, de empatia, de compaixão, de querer mudar o mundo, leva a gente a quebrar barreiras, derrubar muros, que seja.
Dizem que fazer poemas é coisa de gente jovem; que se faz boa poesia quando se é jovem, ao contrário de se escrever prosa, coisa de gente madura. Mais ajuizada, talvez? Concordo com essa ideia. A juventude é absurdamente incontida, delirante, apaixonada, cheia de coragem, de valentia, de sonhos.
Ingressei no mundo do trabalho ainda menina, naqueles anos de 1970, com carteira assinada (infelizmente, condição combatida hoje em dia). Fui trabalhar na área de recursos humanos de um banco (Bamerindus), onde permaneci por longos e duríssimos cinco anos, pouco mais. Trabalhava o dia todo, completava os estudos à noite, escrevia de madrugada.
Deixei o trabalho no banco para lecionar, já no segundo ano do curso de Letras (Letras português/inglês na Tuiuti – quando a instituição, dirigida por um coronel, abrigava muitos daqueles que seriam meus professores, anos mais tarde, na UFPR, no curso de Especialização em Literatura Brasileira. Antes mesmo de me formar, fui professora em todas as classes da Educação Básica, menos na de alfabetização de crianças. Sempre gostei de dar aulas, de ensinar para aprender sempre mais e mais. Lecionei em escola filantrópica, confessional, em escola pública de Educação Básica por breve período, com contrato para substituição; mais tarde, em faculdades privadas (FAE e Unicemp, grupo Positivo). Ao ingressar no Ipardes (autarquia da Secretaria de Estado do Planejamento), trabalhei com revisão de textos técnicos e, alguns anos depois, passei para a área da pesquisa socioeconômica (hoje estou aposentada por essa instituição pública). Essa passagem aconteceu quando de meu retorno do Mestrado em Linguística/Análise do Discurso, cursado na Unicamp, sob a orientação da professora doutora Eni Orlandi, com apoio institucional do Ipardes e bolsa da Capes. Minha dissertação constitui um estudo discursivo sobre um recorte da obra de Emílio de Menezes (imagem 2). Em 2002, esse estudo foi publicado pela editora Aos Quatro Ventos, especializada que foi na publicação de estudos técnicos e científicos, de Magnus Pereira, historiador da UFPR.
Por anos, lecionei em cursos de aperfeiçoamento para funcionários públicos em vários setores da Administração Pública. Nas horas de folga, eu fazia revisão de texto de livros, dissertações, teses e projetos para pessoas que requeriam meu trabalho nessa área. E integrei o Conselho de Editoração, da Secretaria Estadual de Cultura, por mais de uma vez.
E nas horas vagas, naquelas horas mudas para muitos, eu me exercitava na poesia. Fazia poemas, revisava poemas, lia poemas, declamava poemas, falava com algum outro notívago sobre poemas. Muitas noites em claro! Que beleza, que doçura é a poesia, como nos desperta e quanto amargor experimentamos em seus açúcares!
Bem, nessa caminhada de estudo e trabalho, contei com o apoio de dezenas de pessoas, com o carinho de muitas amigas e amigos. Não se faz nada sozinho, como já cantou Tom Jobim.
Um livro de poemas na mão
Os caminhos são muitos para se publicar um livro de poemas, se assim se desejar. Mas nem todos estão acessíveis. Você tem o livro que julga pronto para publicação. Mas ele é só um monte de papel com seus escritos, ou um arquivo num computador; daí para transformá-lo em livro físico, que poderá ser vendido, comprado, posto na estante, lido, é uma estrada cheia de trabalho árduo, de choro e velas acesas. Não acontece de alguém vir se oferecer para publicar seu livro, quando você é um autor desconhecido do grande público. Você tem de ir à luta! Tem de mostrar o trabalho de alguma forma. Pode participar de concursos literários, de eventos literários, como feiras e encontros de escritores, tardes literárias; pode enviar seu livro para uma editora ou pensar numa produção independente, que você pague do próprio bolso; enfim, pode produzir um livro todinho pela Internet, e percorrer os caminhos da edição, da distribuição e venda dessa maneira. Mas nunca é simples! Não é à toa que Antonio Cicero, em seu livro Porventura, nos apresenta seu poemeto 3h47: “Bem que Horácio dizia/preferir dormir bem/a escrever poesia.”
Fiz essas coisas todas, de andar por aí com amigos poetas e poemas debaixo do braço, ou “no bolso detrás da calça diária”, como digo em um verso meu. Fui premiada em concursos, na década de 1980, no movimento de iniciação literária da União Paranaense dos Estudantes de 1º e 2º Graus (UPES), e também em São Paulo, no movimento de iniciativa do grupo Poeco – Só Poesia, da universidade Mackenzie.
Em 1988, participamos do Festival de Música Brasileira do Estado de São Paulo, realizado no anfiteatro da Unicamp, em Campinas. Recebemos o prêmio de 2º lugar com a composição Perfil de Sal, poema que dá título ao meu livro. O poema foi musicado por meu parceiro Mauro Marcondes. A cantora recebeu o prêmio de melhor intérprete da nossa música. Está acessível no Youtube como Túnel do Tempo 2: https://www.youtube.com/watch?v=ej1-GvoPrhA. Este concurso da Unicamp trouxe de volta o clima dos grandes festivais da canção brasileira dos anos 1960. Lembro de Carlos Vogt e Paulinho da Viola como jurados. Foi um momento de grande alegria.
Tive o privilégio de acompanhar o 45º Encontro dos Escritores Brasileiros em São Paulo, juntamente com escritores e poetas paranaenses, apoiados pela Secretaria de Estado da Cultura. Lembro do clima maravilhoso, fervilhante, quando aplaudíamos o fim da ditadura militar, o fim da censura. O escritor Ignácio Loyola de Brandão disse que aquele encontro foi um alívio por isso mesmo. Liberdade era a palavra de ordem naquele ano de 1985. Quarenta anos antes, em 1945, em pleno Estado Novo, alguns escritores importantes por suas obras, que questionavam a falta de liberdade, fundavam o 1º Congresso Brasileiro de Escritores, e entre eles estava Mário de Andrade, falecido pouco depois. Em seu poema Ode ao Burguês, Mário clama pela “morte das adiposidades cerebrais” (risos).
Participei de algumas coletâneas e antologias de poemas, quando fui chamada. Coletânea de Casa do Poeta, antologia Feiticeiro Inventor, ao lado de nomes conhecidos e aclamados da poesia paranaense, como Reinoldo Atem, Paulo Leminski, Helena Kolody, Alice Ruiz, Sérgio Rubens Sossélla, entre outros queridos poetas, num belo livro organizado pelo poeta Hamilton Faria, hoje poetando ativamente em São Paulo.
A década de oitenta produziu uma cultura gigante, desmistificadora, politizada, louca, enfim, que se fazia sem pedir licença, que dava um basta ao autoritarismo. Da convivência de boêmios, poetas, artistas, intelectuais, de toda a turma da resistência político-cultural, no bar e restaurante Bife Sujo, resultou a Coletânea Bife Sujo, Edições Clandestinas, Século XXI, que reuniu os artistas da sobrevivência, “para surpresa do incrédulo oficialismo cultural”, como disse M. Ilan. Capa do artista Kambé, feito com esmero por artistas e escritores paranaenses. É um livro lindo! Tenho muito amor por essa publicação.
Em 1985, por iniciativa da diretora da BPP, Maria Eugênia de Souza Chedid, coordenei a mesa do encontro Um Escritor na Biblioteca. Comigo à mesa estavam a professora Denise Guimarães e o poeta Reinoldo Atem (imagem 3). O poeta convidado foi Paulo Leminski. Lembro de uma pergunta que fiz ao Paulo; quis saber se ele, por se tornar um autor consagrado, abandonaria sua teoria estética da poesia como “inutensílio”. Leminski se alonga na resposta, ao dizer que não, que a poesia sempre será inutensílio. Sua concepção de poesia a tomava como exercício de liberdade, que não serve a nenhuma causa anterior a ela. Para o poeta, de “distraídos venceremos”, “a linguagem é o único signo que sai da nossa boca com o calor do nosso hálito.” Leminski encantou a plateia falando do amor que temos pelas palavras, pelo jogo de palavras no qual foi mestre.
Abrindo os anos 1990, lançamos a coletânea de poemas Carpe Diem (imagem 4), coordenada pelo poeta Marcos Terra. Digo lançamos porque todos do grupo deram alguma contribuição para o projeto do livro. Um fez a capa e ilustração; outro, a foto da capa; outro, as fotografias internas; eu revisei o volume. Havia gente na coordenação do projeto, gente trabalhando no lançamento, que aconteceu no bar Habeas Copus (Copus, sim!), do Serginho Bittencourt. A jornalista e escritora Adélia Lopes fez o prefácio da obra coletiva. Tivemos o apoio da Secretaria de Estado da Cultura. Hoje, esse tipo de apoio cultural só se consegue por meio de leis de incentivo à cultura. Entrada só para os fortes!
Um fato curioso foi minha participação na Antologia da Nova Poesia Brasileira, organizada por Olga Savary, em 1992. Participei com um poema e meio. Sim! Isso porque, na edição, ao recolherem os poemas, deram o meu, a ser inserido na coletânea, por completo sem virar a página. Aquele poema não tinha título, nenhum dos poemas do meu livro tinha título, e o editor não soube reconhecer o final do poema. Editor, traditore! Cheguei ao volume por indicação do poeta e amigo Hamilton Faria.
Individualmente, publiquei dois livrinhos de poemas; digo livrinhos porque são fininhos mesmo. Foram o Galo sem Turno, de 1980, e o Perfil de Sal, de 1983.
A vida tomou rumos extremos, e por muito tempo não pensei em publicar um livro autoral, individual. Todavia, permaneci no campo da poesia, sempre a colocá-la em evidência, sempre a recitar poemas quando convidada, e segui publicando em coletâneas, jornais, como Nicolau e Jornal da Biblioteca, nas revistas de cultura Outras Palavras e ZéBlue. E foi na Revista Fundação, da Fundação Cultural de Curitiba, que tive meu primeiro poema publicado, em 1979, pela escolha de seu editor Wilson Cordeiro. Foi neste momento que Cordeiro começou a me chamar, carinhosamente, de poetinha.
Hoje em dia, como já se deu, pode acontecer de eu apresentar um poema inédito em alguma página das redes sociais.
Poeta bissexta
Assim, me defino como poeta bissexta!
Não escrevo sob qualquer pressão externa, por fome de publicar, por vaidade, para “ganhar cliques”, como dizem os internautas profissionais. Vez em quando, emerge um desejo incontrolável (vaidade?) de fazer o poema ganhar as ruas em forma de livro; mas, para mim, não é projeto, não é meta.
Foi assim no ano passado, de 2022. Tive medo de morrer na pandemia causada pelo Coronavírus e deixar minhas criaturas literárias, do passado e do presente, sem guarida. Senti que precisava reunir alguns de meus mais amados poemas dos livros anteriores, o Galo sem Turno e o Perfil de Sal, e agrupá-los, juntamente com poemas ainda não publicados em livro e inéditos engavetados. Então, produzimos e lançamos o Mundéus – poemas escolhidos, edição da autora, Curitiba, 2022.
No dia 06 de agosto, o mais frio e chuvoso do ano, fizemos o encontro de lançamento do livro Mundéus. O salão do restaurante Victor da praça Espanha em Curitiba ficou lotado; amigos vieram de todos os cantos da cidade; amigos de uma vida inteira, ligados por laços afetivos fortalecidos no espaço da família, do trabalho, no exercício do magistério, na sala de aula, ao lado de colegas e alunos queridos, nos saraus, nas rodas de poesia, nos bares da vida. Muitos deles estiveram lá, para pegar um exemplar de Mundéus. Foi uma tarde incrivelmente linda!
Neste lançamento, pude fazer uma singela homenagem aos dois poetas que jamais soltaram minha mão, e que me encanta ler: Reinoldo Atem e Hamilton Faria. A experiência de poder reafirmar a importância desses queridos poetas na minha desprendida trajetória literária, como leitores e editores, foi de extraordinária importância para mim e para todos os presentes. Tarde fria, com direito a mãos quentes e coração aos pulos! Reinoldo e Hamilton falaram alguns poemas para alegria dos nobres amigos leitores (imagens 5 e 6). Foi bonita a festa!
Justamente, fizemos um lançamento presencial para confraternizarmos com os amigos, para nos sentirmos vivos, ao final de uma pandemia que nos abalou emocionalmente, pelo sofrimento causado pelo contágio, pelas grandes perdas humanas, pelo descaso dos negacionistas anticiência que governavam o país naquele triste período.
Em dezembro de 2022, levamos, a convite, alguns exemplares do livro Mundéus para uma Manhã de Autógrafos na Tenda das Letras do Palácio Belvedere, espaço da Academia Paranaense de Letras. Manhã ensolarada e a poesia, prestigiada!
Mundéus é um livro antologia, não um projeto literário novo. Naquele momento, imaginei que poderia reeditar alguns de meus poemas de que mais gosto, para apresentá-los a um conjunto maior de pessoas que não puderam ler meus textos anteriormente; porque não haviam nascido, ou porque não conheciam meus poemas, não tiveram acesso, dado que a tiragem dos dois primeiros livros que publiquei foram pequenas (talvez 200/300 exemplares). Sobretudo a edição do livro Perfil de Sal, que sofreu perda considerável, ao se esgotar num incêndio (atraio tragédias?).
Em Mundéus, poemas prontos desde a década de 1980 são colocados ao lado de poemas novos, inéditos, alguns deles produzidos recentemente, durante o isolamento provocado pela pandemia. Ao reler os poemas reunidos, avaliei que antigos e novos guardavam parentesco temático e formal. E, mais importante, ao meu ver, não tinham perdido a atualidade; ainda estariam encorpados para despertar reflexão, emoção, fruição estética.
Quantas vezes presenciar o mar...
Sobre os temas recorrentes em meus textos, penso que nunca perdi o mar e o mangue de vista, porque esses espaços são parte de minha existência. Meu pai nasceu no litoral do Paraná, em Guaratuba, e minha mãe, em Paranaguá, terra de camboas (pequenos lagos que se formam pelo movimento das marés). Nasci em Curitiba, mas frequento o litoral desde bebê (quiça antes). A temática do mar nunca irá me abandonar; pra mim, é estruturante; é pele e pensamento! A temática da cidade, urbana, por sua vez, com todas as peças que a colocam em movimento, constitui minha identidade cidadã desde sempre. Sintetizei esse espírito mar-terra nos versos: “... mar pra mim é/barulho de construção/dentro das cidades/onda que/invade o coração e/arma um sol/um barco talvez/caminho de areia/ e/tempestades”.
Bem sei que nos últimos quarenta anos muita coisa mudou no mundo, como se diz, para o bem e para o mal. Mas, relendo meus poemas, pensei que minhas (nossas) angústias existenciais são as mesmas e crescentes, e que o desejo de mudança, de igualdade, de paz social persiste como utopia. Percebi que não falamos de outra coisa nessas últimas quatro décadas. Assim, acredito que valeu a pena publicar os poemas sob nova roupagem e distribuir o livro para um grupo mais amplo de leitores amantes da poesia.
Contudo, hoje ando em conflito com minha própria dicção. Gostaria de experimentar outras formações/invenções na linguagem. Explodir a linguagem, como diria Gullar. Ousar, propor alguma desconstrução linguística, lidar com outros sentidos. Sempre defendendo a poesia sem transbordamentos, de metragem lúcida e incômoda.
Poetas demais, poesia de menos... ou não?
Para fazer poemas, é preciso ler poemas. Mas a poesia está em todo lugar. Está nos livros de poemas, em livros de outros gêneros, fora dos livros, na vida. A propósito, acabo de receber um vídeo curto em meu celular com a marca dos Correios, intitulado “o carteiro, a rua e a poesia”. Nele, quem fala é o carteiro-poeta Cleyton Mendes. Ele coloca um poema no meio das correspondências que entrega nas casas dos moradores de um bairro da cidade de São Paulo. Diz o jovem que foi a forma que encontrou de afastar a melancolia, de melhorar o mundo, de fazer as pessoas sorrirem. Ele é seguro ao dizer que “a poesia não é só o que está nos livros; a poesia está no olhar de quem vê; pode estar nas ruas, pode estar na sua frente”. E dá exemplos de metáforas como situações que o ligam ao mundo. Assim, define sua profissão como inteiramente poética, dadas as semelhanças que vê entre o trabalho do carteiro e o do poeta-mensageiro. A poesia “leva uma mensagem pra alma, uma mensagem pros corações”. Vejam que jeito singular de estar mundo!
Leio textos de todos os gêneros, mas tenho amor maior pela poesia, pela construção poética, pelo poema, pelo livro de poemas. E um carinho especial pelos poetas, os de livro e os de rua!
Alguns autores ensinam a gente a ler e a escrever pela vida toda e não nos deixam jamais. Como não ficar marcada por Émile Zola de Germinal, por Tchecov do conto Estória Alegre, por Jorge Amado de Gabriela Cravo e Canela, pelos livros de Gabriel García Márquez, como o definitivo Ninguém Escreve ao Coronel. Como não se transformar com a leitura de Machado de Assis, de Nelson Rodrigues, de Ferreira Gullar, de Ivan Junqueira. Autores que estamos sempre a reler. E que enorme grandeza trazem à humanidade Chico Buarque, Vinícius de Moraes, Tom Jobim, Antônio Nóbrega, com suas letras, músicas e danças maravilhosas. Bem, a lista de poetas e escritores brasileiros, universais, felizmente, é inesgotável.
Lembro agora das queridas poetas com quem compartilhei e compartilho boas conversas em Curitiba, seja em encontros presenciais, seja lendo e relendo suas poesias: Eulália Maria Radtke, do livro de poemas Lavra lírica, e Adélia Maria Wöllner, de Sons do silêncio. Também aprendo muito em conversas com a poeta Estelita Sandra de Matias, do livro Conciliábulo, e com o amigo escritor e poeta Paulo Venturelli, do livro Bilhetes para Wallace.
Menciono também dois grandes poetas de São Paulo: Cesar Augusto de Carvalho, do livro Curto-circuito, e Rubens Jardim, do livro (R)evoluções poéticas, para citar apenas uma obra desses dois escritores e produtores culturais profícuos. E já começo a cometer injustiças, não mencionando o trabalho de tantos outros poetas importantes que tive a oportunidade de encontrar nessa busca incansável por poesia.
Quem me ensinou a nadar
Agora, lá atrás, quem me ensinou a ler poemas, com alguma propriedade de minha parte, e a identificar melhor a poesia de qualidade foi o poeta Reinoldo Atem, meu primeiro leitor credenciado, incentivador, e foi também meu editor. Com sua crítica generosa, fui me encontrando nos meus próprios escritos com as melhores metáforas que pude produzir. Isso significa que, antes de publicar pela primeira vez, atirei à lixeira pilhas de escritos, sob a agradecida vigilância do poeta de Urbe urge.
Assim, lendo sempre e escrevendo regularmente, mesmo sem publicar com a frequência desejada pelos leitores, vamos fazendo e refazendo textos, amadurecendo a produção; experimentando a linguagem e suas possibilidades neste nosso mundo de urgências e desordens, de pouca nitidez, mundo líquido, já descrito por Zygmunt Bauman.
Vejo muitas pessoas postando seus trabalhos em redes sociais. Muitas vezes o fazem por diletantismo, por capricho, deixando que as palavras as conduzam sem limites ou direção. Outros poucos criam mundos inimagináveis, criam sensações, tirando lições da pedra, para lembrar João Cabral. E atravessam a materialidade da linguagem, quebrando tabus linguísticos.
Fico desolada sempre que ouço dizer que não há mercado para livros de poemas; que poesia não vende. No entanto, poetas estão por aí, disseminados pela cidade. E são muitos! E isso é ótimo, mas não podemos nos enganar com a aparente facilidade imaginada por alguns neófitos. Os menos experientes podem acreditar que tudo que o papel aceita se transforma em criação poética por um lance de mágica. Mas o gênero poético, tem tradição, tem história, tem presença instituída, e a criação demanda trabalho. Trata-se sempre de uma luta penetrar suas camadas, suas crostas, para alcançar o inaudito. “Lutar com palavras” sempre é a lição de Drummond.
Assim a gente vai montando uma biblioteca interior de palavras, de ritmos, de imagens, de fezes, de flor, de fome, como nos fala João de Melo Neto em Antiode – contra a poesia dita profunda, no seu Psicologia da Composição. Diz o poeta: Como não invocar o/vício da poesia: o/corpo que entorpece/ao ar de versos?
Trajetória literária desprendida
Hoje, não integro nenhum grupo de poesia, mas tenho contato com alguns poetas e escritores pelas redes sociais. Há uma troca muito boa. É possível conhecer a poesia que se faz hoje, conhecer os poetas, adquirir seus livros, bater papo e fazer reuniões virtuais, enfim, conhecer e contribuir para a divulgação do trabalho literário produzido hoje no Brasil e em outras partes do mundo – o que não dispensa idas à livraria.
Exemplo ótimo dessa possibilidade é a produção do programa Poetariado, em canal do Youtube, coordenado pelos escritores e poetas Cesar Augusto de Carvalho e Hamilton Faria. Pelo canal, conheci poetas do Brasil e de outras partes do mundo. Tive a honra de participar do programa do Poetariado no Youtube, no dia 26 de setembro de 2022, juntamente com nosso poeta convidado Paulo Venturelli.
Em seguida, participei de outro encontro virtual (essas exposições podem ter comprometido, fortemente, minha fama de vampira-noiva de Dalton Trevisan!). Conheci o trabalho da poeta de Brasília, Noélia Ribeiro, do livro Assim não vale. Noélia é criadora e coordenadora do espaço no Instagram chamado A Fim de Poesia, para o qual fui convidada a participar para falar meus poemas; a conversa reuniu, além da coordenadora, os poetas Antônio Moura e Mariana Ianelli. O encontro virtual aconteceu no dia 22 de novembro de 2022.
Nesta conversa com o Turistória, não por acaso, citei mais de uma vez o grande poeta João Cabral de Melo Neto. Cabral é mestre! Posso dizer que li João Cabral antes de ler seus poemas propriamente; bem antes de conhecer sua obra. Por volta dos 20 anos de idade, li Cabral em Reinoldo Atem, em cujos poemas encontrei a mesma contextura de uma terra lavada, exigente, de nordestina secura, que depois iria conhecer no “Educação pela pedra” (1962-1965), em que João Cabral fala do mar e do canavial, da morte e da manhã, e nos dá lições de arquitetura poética, do como construir portas, luz, vidro e concreto. É linguagem lúcida, que questiona o sentido da vida. João Cabral nos ensina que “O que vive fere”, que “viver é ir entre o que vive”. Li e releio essas e outras lições definitivas contidas em “Cão sem plumas” (1949-1950), na obra de João Cabral.
Lembro aqui outro poeta de cabeceira: Ferreira Gullar, que na linha questionadora de Cabral, em seu poema “Galo galo”, pergunta: “- que faço entre coisas?/- de que me defendo?”
Orgulhosamente nos autoproclamamos conterrâneos da poetinha MARISE MANOEL (imagem 7 ), que nasceu em Curitiba em 26 de agosto de 1958.
É feita de frio, de céu encoberto e de loucura por pinhão (sic - risos).
Essa autobiografia o Turistória tem a honra de publicar!
Imagem 7: fotografias da poeta curitibana Marise Manoel