Os Kaingang de Mangueirinha e a resistência indígena no Paraná
Desde 1949 a Reserva Indígena de Mangueirinha é reconhecida e protegida por lei. Ela está localizada entre os municípios de Chopinzinho, Coronel Vivida e Mangueirinha, na margem sul do Rio Iguaçu, próxima às cidades de Pato Branco e Francisco Beltrão. Ali vivem cerca de mil indígenas das etnias Guarani e Kaingang.
Embora hoje a Reserva esteja protegida juridicamente, nem sempre foi assim.
A tomada de terras nas décadas de 40 e 60
Apesar de reservada em 1903, até 1949 a terra indígena de Mangueirinha não era reconhecida. No início, isso não representou um grande problema aos nativos, mas a partir dos anos 40, sim.
Isso porque nesse período se iniciou a ocupação das terras no oeste do Paraná por posseiros migrantes e pelas companhias de terra. Assim, muitos territórios indígenas da região começaram a ser grilados. Foi o caso de Mangueirinha.
Em 1949, o governo de Moysés Lupion e o Serviço de Proteção ao Índio, então responsável pela administração do Posto Cacique Capanema (a terra indígena de Mangueirinha), fizeram um grande acordo. Nele, ficou instituído que o Posto Indígena Cacique Capanema teria seus limites reduzidos para cerca de 8.000 hectares. Somente depois do acordo, Mangueirinha foi legalmente reconhecida como Reserva Indígena.
Originalmente, porém, a terra indígena de Mangueirinha cobria um espaço de 16.000 ha, reconhecido desde 1903. Cerca de 50% dessa área, então, foi expropriada pelo Estado, mais especificamente para a Fundação Paranaense de Colonização e Imigração. Aos poucos, essa região foi ocupada por pequenos posseiros que negociavam com a FPCI.
Contudo, o processo de ocupação de Mangueirinha mudou de face a partir de 1961. Neste ano, o Estado vendeu sua propriedade ao grupo empresarial Forte-Khuri, sendo um dos sócios o próprio presidente da Assembleia Legislativa do Paraná (conhecido como “rei da imbuia”). O acordo girou em torno de 3 milhões de cruzeiros.
Estranhamente, poucos meses depois o grupo Forte-Khury vendeu as terras de Mangueirinha por 58 milhões de cruzeiros à Firma Slaviero & Filhos S/A Indústria e Comércio de Madeiras, posteriormente Grupo Slaviero. Especializada em extração de madeira, a partir de 1963 a Slaviero intensificou sua presença no local, ao ponto de serrar 3000 dúzias de madeira por mês.
Mangueirinha: terra em litígio
Nas imagens de satélite abaixo, que registram atualmente a Reserva Indígena de Mangueirinha, entende-se o motivo de tanto interesse por essas terras. Na época (e ainda hoje), o território Guarani e Kaingang representava a maior área de Mata de Araucária preservada no Paraná. Não à toa, o verde no mapa salienta a manutenção da vegetação original da Reserva, enquanto que ao seu redor toda a vegetação foi derrubada.
Era nítido o interesse da empresa. Ali, grandes extensões de mata de Araucária virgem estavam a ser exploradas e depois vendidas, já que não
havia legislação que impedisse o corte. Só lhes faltou combinar com as centenas de indígenas que habitavam essas terras!
Desde a chegada dos primeiros posseiros, os Guarani e principalmente os Kaingang se recusaram a deixar as terras que originalmente eram deles. Na “Gleba B”, como foi chamada a parte expropriada pelo Estado, há séculos viviam os povos nativos, e por isso eles resistiram ao processo de invasão de seus domínios. Depois da chegada da Slaviero, essa luta ardentemente se intensificou.
Para ilustrar essa resistência, vamos aos fatos. Em 1973, após anos de luta judicial, os Kaingang conquistaram, em primeira instância, o direito de posse da Gleba B. A representação dos indígenas foi enfática e conseguiu algo pouco comum: vencer na Justiça em plena Ditadura. Como era de se esperar, entretanto, em segunda instância o juiz da 2ᵃ Vara Federal de Curitiba deu causa ganha ao grande grupo empresarial.
Além disso, desde 1973 os Kaingang se deslocavam a Brasília para protestar contra a tomada de suas terras. Em 1976, por exemplo, eles foram à capital federal e conseguiram, além do fechamento de uma serraria, o direito de 45% da renda dessa empresa (não há informações, porém, se esse valor foi pago, nem de qual madeireira se tratava).
Conflitos e a atuação de Ângelo Cretã
Por que os indígenas não aceitam de bom grado o estabelecimento da Slaviero? O primeiro motivo é óbvio: os Guarani e os Kaingang perderam suas terras, mesmo que parte delas tenha se transformado em Reserva. O segundo motivo, porém, é bem menos conhecido.
Segundo os Kaingang e entidades ligadas aos indígenas (como o extinto Conselho Indigenista Missionário - CIMI), a Slaviero expulsou os indígenas da Gleba B, queimou as suas casas, matou os animais da região e derrubou boa parte da reserva de araucárias. Além disso, era sabido que parcelas para além da Gleba B eram expropriadas, e que os nativos dessas áreas eram “pressionados” por "jagunços".
Um documento do Ministério do Exército comprova o relato acima. De acordo com a fonte, o chefe do posto da FUNAI relativo à Mangueirinha, Artur Gastão Gorra, estaria negociando a venda da madeira extraída. Aliado a ele, um político local facilitava o emprego de “máquinas de seu município” para o desmatamento. Nessa cena, a Slaviero garantia a posse desse terreno em litígio através de “elementos armados”.
Para liderar os Kaingang nessa disputa, surgiu a figura importante de
Ângelo Cretã. Nascido em 12 de dezembro de 1942, Ângelo dos Santos Souza Cretã descendia de uma antiga linhagem Kaingang, a dos caciques. Durante toda a sua formação, viu de perto a tomada de suas terras, e canalizou todo esse descontentamento para a ação política.
Assim, mesmo com a resistência da ARENA e da FUNAI, Ângelo Cretã se tornou o primeiro vereador indígena eleito no Brasil em 1975, pelo MDB, na Câmara de Mangueirinha. Empossado, ele passou a coordenar esforços para a recuperação de terras indígenas não só de Mangueirinha. Em 1978, por exemplo, ele articulou uma ampla frente de resistência indígena do Sul, que ocupou e recuperou a terra indígena de Rio das Cobras, no Paraná, e de Nonoai, no Rio Grande do Sul.
Em 1979, ele continuava a empreitada. Já como cacique de Mangueirinha, Cretã participou de um Ato Público em defesa de sua terra, realizado em 23 de novembro na Igreja do Guadalupe, em Curitiba. Do evento participaram, entre outras celebridades:
Darcy Ribeiro, Dom Pedro Casaldáglia, Dom José Gomes, Wagner D’Angelis, Ruy Wachowicz, Riad Salamuni, Pe. Antônio Lasi Jr., Pe. Egídio Schwad, Mary Alegretti, Carmen Junqueira, Dalmo Dallari e Olimpo Serra.
Além de buscar apoio político neste Ato Público, Cretã deu o tom: assim como em Rio das Cobras, Mangueirinha seria retomada no próximo ano através da luta.
A morte de Ângelo Cretã e a retomada de Mangueirinha
Infelizmente Cretã não pode ver seu sonho se realizar. Em 22 janeiro de 1980, ele se acidentou com seu carro em uma rodovia, ao bater de frente com uma carreta. Sete dias depois, faleceu no hospital. As circunstâncias da morte, porém, nunca foram esclarecidas.
Segundo familiares e testemunhas, a morte foi resultado de uma emboscada feita por atiradores pagos pela Slaviero, já conhecidos no local como “inimigos dos indígenas''. Há diversas provas que confirmam essa versão, conforme escreve Pedro Afonso de Souza Castro.
O mais grotesco dessa história é que Cretã estava bem depois do acidente. Para sua esposa, Elvira, ele foi morto no hospital, pois foi obrigado a beber água quando não estava apto. Ao interrogar a enfermeira, esta teria dito “que não queria perder o seu emprego”. Cretã morreu de embolia pulmonar, e por isso não se descarta a hipótese de envenenamento. A polícia nunca reviu o caso.
Ângelo Cretã não foi a única vítima. Outros tantos líderes indígenas foram assassinados durante a ditadura, assim como dezenas ameaçados de morte. Entretanto, isso não impediu que os Kaingang e os Guarani recuperassem Mangueirinha, por meio de lutas e ações judiciais que duraram até 1982.
Ângelo Cretã foi transformado em mártir, em índio guerreiro, e sua memória serviu de estímulo à luta.
Em 1982, a Terra Indígena de Mangueirinha foi totalmente recuperada, e desde 2005 a antes Gleba B é reconhecida como parte integrante da Reserva.
Por meio da resistência, os indígenas defenderam a sua existência e conquistaram, em pela ditadura, o direito à terra e à vida.
40 anos da morte
Em 2020, no dia 29 de janeiro, o Ministério Publico do Paraná realizou um evento em memória de Ângelo Cretã, do qual participou seu filho, Romancil Cretã.
Ele disse:
“No dia de 29 janeiro de 1980 eu perdia meu pai Ângelo Cretã para a maldade dos latifundiários, para posseiros grileiros de terra. Sei que a morte do meu pai não foi em vão, ele foi um líder verdadeiro que foi capaz de dar sua própria vida pelas nossas terras. Ele nos deixou um legado que é lutar pela nossa terra, pelo nosso povo. Quando vejo um governo fascista declarar que não vai demarcar um milímetro de terra e vejo até parentes indígenas o apoiando, fico muito triste. Mas logo me lembro do meu pai, e compreendo que a luta é longa”, diz.
Atualmente, Romancil é uma das principais lideranças indígenas do país.