A trajetória de Julia Wanderley
Em seu discurso de posse na Academia Paranaense de Letras, Helena Kolody proferiu os seguintes elogios:
- Há vidas que são clarões de incêndio: apagam-se e logo são esquecidas. Outras brilham no fulgor que se reflete para além do nosso olvido. Assim brilhou a vida de Julia Wanderley Petrich.
Essas palavras da poeta paranaense sobre Julia Wanderley não são exceção. Pelo contrário, a educadora é lembrada com muita admiração por milhares de pessoas. Esse é o caso de Chloris Casagrande Justen, educadora, poeta e presidente do Centro Paranaense Feminino de Cultura. Segundo ela:
- Julia Wanderley é um ícone da mulher paranaense que venceu as amarras e os limites da sociedade da época.
Da mesma forma, a professora Ceres de Ferrante, filha de Salvador Ferrante (que foi amigo de Julia Wanderley), preserva a memória de Julia. Para Ferrante, a educadora tinha muita
- ousadia e coragem, porque a escola estava aberta para os homens. Ela acreditava no que iria fazer e acreditava no futuro.
Essas frases dão uma pista da grandiosidade de Julia Wanderley Petrich. Entretanto, elas não explicam por completo quem foi Julia.
Por isso, nesse artigo iremos contar a trajetória pessoal da educadora paranaense, para dar destaque a sua importância histórica.
Infância
Julia Augusta de Souza Wanderley (sem acento) nasceu em 26 de agosto de 1874, na cidade de Ponta Grossa, PR (ver imagem 1). Ela era filha de Laurinda de Souza Wanderley, descendente de portugueses com posses, e de Affonso Guilhermino Wanderley, descendente de holandeses que se estabeleceram em Pernambuco no século XVII. Julia teria sido a primeira dos 9 ou 10 filhos do casal Souza Wanderley.
Desde 1877, junto de seus pais e avós maternos, Julia de Souza morou em Curitiba. Primeiro no Cajuru (ver imagem 2), região rural que lembrava a Ponta Grossa, e depois no centro da cidade, após o falecimento da avó materna em 1878. Provavelmente a família migrou à capital para aumentar os seus ganhos, uma vez que Curitiba começava a crescer após a inauguração da Estrada da Graciosa.
Estabelecidos em Curitiba, Dona Laurinda, dona de casa, e o Seu Affonso, hábil pintor e sócio fundador do Club Republicano de Curityba, tiveram condições de proporcionar os melhores colégios para a primogênita. Julia, por exemplo, foi aluna da Dona Iria Luz Muricy, esposa do Doutor José Cândido da Silva Muricy. Além disso, um ano depois, em 1885, ela foi matriculada no Colégio Curitibano (cujo diretor era Nivaldo Braga), onde foi
colega de Romário Martins, Ermelino de Leão, João David Perneta e Artur Martins Franco.
A maturidade
Aos 16 anos, Julia Wanderley era extremamente engajada. No ano de 1890, ela liderou um movimento para permitir o ingresso de mulheres na Escola Normal do Paraná (imagem 3). Embora, desde o início da década de 1880, as mulheres pudessem tirar o diploma de magistério, a elas era vedada a chance de participar presencialmente das aulas. Resultado: a maioria dos professores eram homens.
Dessa forma, Wanderley foi a primeira mulher a se matricular e frequentar o ambiente da Escola Normal. Mas ela não foi a única. Em 1891, Wanderley insistiu para que seu direito fosse estendido a mais mulheres. E o pedido, é claro, foi aceito.
Nesse período, Julia Wanderley abriu uma escola particular chamada “Escola de Dona Julia” ou “Escola Particular de Dona Julia”, na rua XV (possivelmente no mesmo prédio onde seu pai era pintor, a “Casa Verde”). Nela, a educadora, de forma inovadora, ministrava aulas para crianças de ambos os sexos.
Além disso, desde 1892, Julia escrevia rotineiramente para periódicos de Curitiba, mas sob o pseudônimo de Augusta de Souza (seu nome do meio). Diferentemente da maioria das mulheres de seu tempo, ela debatia questões de ordem social e política, sempre a defender a educação universal e a apontar as injustiças sociais contra os mais pobres. Não somente, ela já era conhecida por ser uma católica esclarecida (pois era entusiasta das ideias de Charles Darwin) e por defender muitas teses socialistas.
Em 1894, após a obtenção do diploma, Julia Wanderley se tornou a primeira formada em Curitiba a ser nomeada para o Magistério Público do Paraná, na área de Ensino Primário. Ela foi designada à Escola Tiradentes, que ficava ao lado do Passeio Público (imagem 4).
Sim, essa mulher era a primeira em tudo,
“ousadia e coragem”.
Matrimônio, adoção e reconhecimento
Em 1º de outubro de 1895, Julia Wanderley se casou com Frederico Petrich (imagem 5), marceneiro e entalhador filho de portugueses (mas cujo passado remonta à Alemanha). Logo, ele montou uma loja de molduras na Casa Verde (na propriedade do pai de Julia - imagem 6). Petrich era um profundo admirador de sua esposa e não se entristecia por ser ofuscado pelo brilho dela. Frederico não era conhecido como tal ou marceneiro, e sim como “o marido de Julia Wanderley”.
Esse brilhantismo ficou destacado no momento de construção da casa deles. Quem projetou e administrou a obra não foi o marceneiro, mas a professora. Diz-se, inclusive, que depois de pronta a casa foi visitada por inúmeros engenheiros, que reconheceram a qualidade da obra, principalmente por sua solarização: a casa dos Wanderley Petrich era a mais bem iluminada pelo sol (a casa ficava na atual Praça 19 de Dezembro, próxima à Escola Tiradentes; hoje, no lugar dela, há um prédio).
Nessa mudança para a região do Passeio Público, em 1901 (até então o casal morava no anexo da Biblioteca Pública), a família Wanderley Petrich cresceu. Julia queria muito ter filhos mas não podia. Então, a saída encontrada foi adotar o seu sobrinho, filho da sua irmã, Minervina Wanderley da Costa, com Antonio Herderico da Costa. Seu nome era Julio da Costa, e depois Júlio da Costa Petrich, nascido em novembro de 1901.
Embora a adoção não tenha sido formalizada, o casal criou Julio a partir de então. Quanto aos motivos do caso, deve-se lembrar que essa prática de doação entre familiares era comum. Certamente Julia dispunha de segurança financeira e, por ser hábil educadora, os pais biológicos fizeram essa dura escolha.
Depois disso, a vida profissional da educadora decolou. Em 1914, ela se tornara a diretora da Escola Tiradentes (a primeira diretora da história do Paraná). Um ano depois, foi consagrada como membro do Conselho Superior do Ensino Primário do Paraná. Nesse período, Julia tomou posse da cadeira número 28 da Academia de Letras dos Campos Gerais.
Para além desse legado educacional, Julia Wanderley tinha gostos interessantes. Ela
era fotógrafa
e adorava tirar fotos de sua família e de cenas cotidianas de Curitiba: o fazia porque se preocupava em preservar a sua memória, a das pessoas ao seu redor e a da própria cidade. Em seu acervo há fotos da campanha do Contestado, inaugurações, sedes de serviço públicos, personalidades, reuniões políticas, paradas militares, desportivas, escolares, cívicas, além de inúmeras fotografias suas com Julio, por exemplo. Desde 1993, esse acervo de mais de 2000 itens é administrado pela Fundação Cultural de Curitiba
(imagem 7).
Falecimento e legado
Julia Wanderley faleceu no dia 5 de abril de 1918, aos 44 anos (imagem 8). A causa da morte foi um neoplasma pélvico, em decorrência do desenvolvimento de um câncer uterino. Julia deixou o marido (que faleceu em 1935) e o filho Julio (que depois foi farmacêutico, proprietário da farmácia São Sebastião em Curitiba, casou com Aziolé Sardenberg, e continuou o legado fotográfico da mãe-tia).
Desde então, Julia foi transformada em modelo de educadora paranaense, por ser a primeira em tudo o que se propôs a fazer.
Ela acreditava profundamente que “a educação encerra em seu regaço mais do que a toga do romano, mais do que a paz ou a guerra, encerra os destinos dos homens e das nações”.
Ou seja, ela depositava amor e confiança na educação, a única que, para ela, moveria o mundo.
Homenagens
O tamanho de Julia Wanderley somente cresceu com o tempo. E ainda bem! Hoje, ela é nome de rua em Ponta Grossa e Curitiba, nomeia escolas e bibliotecas (imagem 9) e, além disso, está eternizada em um busto talhado pelas mãos de João Turin. A obra se encontra na Praça Santos Andrade, em frente ao Prédio Histórico da UFPR — lugar perfeito para manter viva a maior educadora do Paraná (imagem 10).
Ousadia e coragem.